Reescrita
Por Júlia Córdova de Souza
Saltimbanco: substantivo masculino que significa artista de feira ou de
circo e acrobata. Palavra peculiar que possui uma sonoridade interessante. Seu
plural “saltimbancos”, nomeou um musical interpretado por jovens na década de
setenta, o qual abordava a história do conflito do proletariado contra os
detentores dos meios de produção a partir de uma alegoria teatral em que quatro
jovens animais cansados da repressão de seus donos, fogem em busca de sucesso
como artistas. Já para mim, “Saltimbancos” é significado de força, persistência
e amizade.
Não recordo exatamente a data, sei que foi no ano de 2011, no período do
Sarau Literário do Colégio Piratini, no qual cursei meu ensino médio. Todo ano
esse evento cultural era realizado com o objetivo de maximizar o conhecimento
artístico dos alunos. Entretanto, naquela ocasião seria diferente, tínhamos a
vontade de fazer algo melhor, pois aquele era o nosso último ano escolar,
nossos últimos atos como alunos de ensino médio.
A proposta era uma apresentação artística que compreendesse o tema “O
jovem no palco através das décadas”. Eu e meus colegas quebramos a cabeça para
encontrar algum texto interessante e surpreendente para ser representado,
quando uma colega sugeriu “Os Saltimbancos”. Muitos foram contra. “Teatro de
criança!”, “Animais cantando?”, “Por que interpretar bichos artistas?” – foram
diversas as questões levantadas até se obter um acordo geral. Decidimos pelo
musical sugerido, uma vez que nenhuma outra ideia surgira.
Os ensaios iniciaram e as desavenças também. Não éramos alunos
organizados, uns coordenavam e outros xingavam, a todo o momento a gritaria e a
bagunça estavam presentes. Era muito difícil transformar uma turma de trinta
alunos em um elenco teatral, sendo que todos eram amadores e estavam em meio de
provões e cursinhos pré-vestibular. Era o último ano, a época de formatura e o
adeus a muitos amigos, precisávamos de alguma forma transformar aquele momento
em algo que pudéssemos lembrar de uma maneira saudosa e especial.
Certa vez, estávamos em um de nossos ensaios semanais dentro das salas de
aula com as classes afastadas para possibilitar as performances. Havíamos
passado a tarde debruçados sob a última cena da peça, a qual retrataria a
vitória dos animais diante de seus donos, e para representar isso,
interpretaríamos a música “Todos juntos somos fortes” – pertencente ao
repertório original de “Os Saltimbancos”. Embora fosse a última cena, uma
representação de um momento feliz, a turma já estava muito exausta, diversos
ensaios já tinham sido realizados e o cansaço era muito grande. O “grand
finale” não estava dando certo. A tensão começou aumentar, pois o dia da
apresentação estava próximo. Devido a tantas preocupações, o personagem
principal, em meio de uma de suas falas, resolveu desistir. O choque foi muito
grande, a sala que até o momento estivera cercada de burburinhos,
transformou-se em silêncio absoluto. Meu colega relatou que não se sentia
preparado para interpretar, que não agüentava mais tanto esforço, e assim,
optou por desistir. Dessa forma, uma discussão iniciou-se. Os mais sensíveis
choravam com a possível derrota, já os outros aumentavam ainda mais o fervor da
discussão. De repente, minha colega subiu em uma cadeira e pediu que calassem a
boca. Todos se assustaram com a manifestação daquela pequena menina. Ela
começou então a descrever todo o nosso crescimento desde o início das idéias
para o teatro até aquele momento. Incrivelmente, todos pararam de brigar para
escutá-la com atenção. Aqueles segundos de calmaria, juntamente com as palavras
da garota, fizeram com que todos começassem a refletir sobre o valor e a
importância de tudo aquilo que estávamos fazendo. Ela lembrou que era nossa
última apresentação e que se havíamos chegado até ali, nada tinha dado
totalmente errado. Ao terminar de proferir essas palavras, meu colega que
estivera ensaiando como personagem principal, resolveu mudar de ideia.
Agradeceu a todos por não termos desistido dele e incentivou que continuássemos os ensaios como antes,
afinal, como dizia na música que teríamos de interpretar todos juntos éramos
mais fortes.
Tenho certeza de que essa lembrança é a mais forte em mim. Em particular,
esse ensaio em que todos fomos da derrota à vitória em questão de minutos,
justamente por lembrarmos que tínhamos uns aos outros e que poderíamos superar
as dificuldades por isso. Aquele foi um ano conturbado, cheio de compromissos
com o colégio, cursinho, a responsabilidade de passar no vestibular e o receio
de deixar de conviver com pessoas amigas. “Os Saltimbancos” nos uniu de uma
maneira que transformou a turma em uma família, precisávamos estar muito
engajados para que aquela apresentação acontecesse e tudo que aprendemos na
construção desse pequeno espetáculo, foi o valor da força que um pode fazer em
todos e o quanto precisamos lutar para que as coisas deem certo. No fundo,
éramos uns saltimbancos mesmo, no sentido da história da trama, ninguém sabia
ao certo o que queria da vida, contestávamos tudo e nos achávamos alunos
melhores dignos de tentar fazer a melhor apresentação do Piratini. Naquela
época, em uma atividade colegial, estávamos aprendendo sem perceber os
principais valores de trabalho e persistência para a vida fora dos portões de
proteção de uma escola.
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