quarta-feira, 28 de setembro de 2016

A IMPORTÂNCIA DA PRECISÃO: UMA ANÁLISE DAS DIFICULDADES DA APLICAÇÃO DO CONCEITO DE UNIDADE TEMÁTICA NA PRODUÇÃO DE TEXTOS


Aluno 66 e Aluno 74
RESUMO

O presente artigo analisa textos produzidos na disciplina de Leitura e Produção Textual do primeiro semestre do curso de Letras. O artigo tem como objetivo identificar as possíveis causas para as dificuldades encontradas pelos alunos para cumprir o quesito de unidade temática em suas produções. Os dados da análise são comparações de trechos das produções de duas alunas nas cinco diferentes propostas realizadas, incluindo a primeira versão, pareceres, diários e reescritas. Os resultados indicam que a falta de conhecimento prévio e a falta de aporte adequado na educação básica podem dificultar a produção textual, ao passo que sua prática, mesmo que tardia, pode trazer considerável progresso para os alunos.

Palavras-chave: Unidade temática. Produção textual. Escrita acadêmica.

INTRODUÇÃO

Este trabalho analisa, em textos universitários realizados na disciplina de Leitura e Produção Textual do curso de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, o desempenho dos estudantes no desenvolvimento de unidade temática na produção de textos. Este conceito, apropriado ao longo do semestre, pertencente às qualidades discursivas apresentadas por Guedes (2009) e consiste na habilidade do escritor de delimitar um tema, identificar suas partes e das relações que essas partes mantêm entre si, para que seja estabelecida uma ordem racional na ocorrência dos fatos, guiando o leitor.
O presente artigo é uma tentativa de identificar a presença ou ausência desta qualidade discursiva nos textos desenvolvidos ao longo do semestre por duas alunas da disciplina. São também analisados os progressos da turma em relação ao critério, os meios que foram utilizados para revisar este critério nas diferentes versões geradas para o mesmo texto e a percepção pessoal de cada uma das alunas sobre essa qualidade em seus textos, com base em seus diários.
Este estudo organiza-se em seis partes: a primeira trata da revisão da literatura onde se destacam os conceitos trabalhados para embasar este artigo; a segunda trata da metodologia utilizada para a apresentação deste relatório; a terceira trata da apresentação da análise de dados levantados; a quarta trata das considerações finais, onde constam as possíveis respostas à questão levantada e outras observações sobre a andamento da disciplina e do próprio artigo; e na quinta estão os anexos que incluem todas as propostas realizadas pelas duas alunas e suas devidas reescritas, pareceres, diários e critérios de avaliação.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

A escrita e a criação de textos estão presentes em nossas vidas a partir do momento em que se inicia a alfabetização. Composição, redação, produção de texto: todas essas atividades descrevem “a ação de produzir textos” (GUEDES, 2009, p.88), e não existe aluno que tenha concluído seus estudos que não tenha feito uma quantidade relevante de atividades de escrita.
No cotidiano também lidamos frequentemente com situações de produção textual, tais como enviar um e-mail, fazer um currículo ou redigir documentos administrativos. Atualmente, muito em função das redes sociais, a tarefa de escrever tornou-se para muitos uma atividade diária.
O ensino de língua portuguesa, no que diz respeito às diretrizes curriculares para o ensino médio, deve “propiciar ao aluno o refinamento de habilidades de leitura e de escrita, de fala e de escuta” (MEC, 2006, p.19). Disso depreendemos que o aluno, ao concluir o ensino médio, deve ser capaz de se expressar apropriadamente em seu idioma e ser capaz de compreender o que lhe é transmitido, seja de forma oral, seja de forma escrita. Nas demais áreas do conhecimento, principalmente nas áreas humanas, também trabalhamos frequentemente com esta habilidade na medida em que precisamos, por exemplo, dissertar sobre determinado assunto ou responder a perguntas; sendo o ensino da escrita, neste contexto, portanto, responsabilidade de todos os professores (cf. Guedes, 2009, p.81)
Com base no exposto, tendemos a crer que a produção de texto é algo simples, que é feito por todos com facilidade, pois entendemos que algo tão presente em nossas vidas deveria ser natural. Porém, mesmo lidando cotidianamente com a prática da escrita, muitas pessoas apresentam dificuldades na produção textual, mesmo após a conclusão do ensino básico.
As dificuldades associadas à escrita são certamente de muitas naturezas, e uma das principais causas está relacionada com a maneira como nos familiarizamos com a escrita ao longo da vida e com a forma aprendemos a escrever.  Neste contexto, é de extrema importância entender como o processo de letramento interfere na maneira como lidamos com a leitura e a escrita. Rottava (2000, p.12) nos descreve o processo de letramento conforme segue:

[...] diz respeito à condição de quem não apenas sabe ler e escrever, mas cultiva (dedica-se a atividades de leitura e escrita) e exerce (responde às demandas sociais também dessas mesmas habilidades) as práticas sociais que usam a escrita.

A autora explica que o letramento se difere do processo de alfabetização, aprendizado que se restringe a um processo de decodificação. No letramento, a escrita e a leitura caminham juntas, são bases de um mesmo processo que permite ao aluno uma compreensão mais ampla de ambas as atividades, ou seja, não se aprende a escrever sem ler e vice-versa. Freire (1989, p.28) nos traz uma concepção bastante parecida ao afirmar que “ler e escrever [são] momentos inseparáveis de um mesmo processo - o da compreensão e o do domínio da língua e da linguagem.” O autor defendia uma compreensão crítica do ato de ler, o que inclui uma abrangência muito maior do conceito, considerando o ato como indissociável do social, onde ler é também uma maneira de compreender o mundo.
No entanto, sabemos que nem sempre o processo de letramento ocorre durante o ensino básico e muitos alunos acabam por não exercitar de maneira constante práticas de leitura e escrita contextualizadas com a sua realidade, o que pode gerar a dificuldade tanto na compreensão de textos, quanto na produção de textos com sentido. Ensinar leitura e escrita de forma artificial, com objetivo meramente instrumental, pode fazer com que esses processos sejam encarados como algo mecânico e desconectado da realidade daquele que lê e escreve.
Kleiman (1995) também aborda questões relacionadas ao contexto na prática de leitura e escrita ao nos esclarecer como o conhecimento prévio pode interferir no processo de compreensão textual. Muitas vezes o leitor não é capaz de compreender o que o autor diz por não estar familiarizado com a estrutura textual utilizada, por não conhecer os conceitos trabalhados ou mesmo por seus conhecimentos genéricos não serem suficientes. É também por isso importante dar especial atenção ao tipo de processo de escrita que será adotado. O conceito que utilizamos na disciplina, e que consideramos mais inclusivo e coerente com a visão de escrita como um processo social, é o que descreve a escrita como um processo de interação, nos moldes delineados por Koch e Elias (2009). Neste contexto, o conjunto de conhecimentos daquele que escreve deve necessariamente incluir informações sobre o seu interlocutor. Em outras palavras, quem escreve deve considerar que escreve para alguém e esse alguém é parte fundamental do processo.
A esse respeito também Rottava (2012) ajuda a compreender algumas dificuldades em um artigo de análise de compreensão leitora, nos trazendo algumas informações do processo de leitura de alunos universitários. O trabalho mostra que, mesmo estando no ensino superior, boa parte dos alunos apresentou dificuldade na compreensão adequada de textos. A autora destacou nas suas conclusões alguns dos principais motivos encontrados para a dificuldade de leitura desses alunos. Foram eles “pouca familiaridade com textos que circulam em contexto acadêmico; práticas de leitura variadas; a não neutralidade dos leitores (e escritores); e a necessidade para transitar teoricamente entre conceitos não conhecidos durante uma leitura.” (ROTTAVA, 2012, p. 163). O primeiro e o último motivos citados pela autora descrevem dificuldades que pode se estender para o processo de escrita, visto nesses casos a dificuldade reflete um problema que os alunos encontram no processo de construção de sentido, o que pode se dar tanto em relação à leitura como em relação à escrita.
Em uma tentativa de se afastar dos processos pedagógicos tradicionais de produção de textos, Guedes (2009) com base em sua experiência como professor, tentou buscar outras maneiras de ensinar a escrever e, para isso, estabeleceu também novos critérios para avaliar os textos. A proposta do autor é valorizar mais o sentido da escrita e não apenas aspectos meramente técnicos; seu objetivo é se afastar do tipo de ensino que faz com que os alunos apenas reproduzam padrões textuais, tendo como foco principal que o ato de escrever é o ato de apresentar ao mundo sua leitura pessoal de um determinado assunto.
Com base nessa visão sobre a escrita – que foi utilizada para como guia na produção de textos da disciplina e será a mesma nos guiará em nossa proposta de análise – o autor postula quais seriam as qualidades discursivas necessárias a uma produção de texto satisfatória, a saber: unidade temática (definir e manter o tema), objetividade (ser direto e claro), concretude (ser preciso, evitar generalizações) e o questionamento (apresentar ao leitor um problema). Cada uma dessas qualidades deve ser observada ao longo da escrita, para que o texto possa cumprir adequadamente a sua função comunicativa, traduzindo ao público alvo de maneira satisfatória aquilo que o autor pretende. Importante ressaltar que a escrita neste contexto é vista como processo, o que significa tomá-la como algo em constante construção e aperfeiçoamento.
A unidade temática pode ser considerada como a principal qualidade a ser observada em um texto escrito, visto que é ela que “dá ao leitor uma chave e um rumo que o oriente no trabalho de atribuir sentido a cada uma das palavras que lê e de estabelecer uma relação entre elas.” (GUEDES, 2009, p.59) Em outras palavras, a unidade temática é o que confere sentido ao texto, na medida em que, sem ela, o texto pode ser apenas um amontoado de frases ou palavras desconexas do todo, ou mesmo ser uma produção sem foco, daquelas em que o leitor passa a se perguntar se compreendeu de fato do que autor está falando.
As considerações prévias acerca do processo de escrita, ou mesmo da relação entre os processos de leitura e escrita, nos indicam que as dificuldades encontradas pelos alunos em cumprir certos critérios na produção textual podem ter inúmeras origens. Especificamente no caso da unidade temática, que nos interessa diretamente, podemos relacionar com questões associadas tanto com dificuldades no processo de aprendizado de leitura e escrita, quanto a dificuldades em cumprir critérios previamente estipulados.

METODOLOGIA

Para o estudo do tema escolhido utilizamos como base os textos produzidos na disciplina de Leitura e Produção Textual do primeiro semestre do curso de Letras da UFRGS, da qual as autoras participaram como alunas no semestre de 2016/1. A metodologia utilizada baseava-se na solicitação de uma produção de texto por vez, com um tema e objetivo específicos, sem muitas orientações prévias sobre os critérios de produção do texto. Como a disciplina já havia ocorrido em semestres anteriores nos mesmos moldes, os alunos tinham acesso a um blog com as produções anteriores que poderiam consultar para se orientar caso desejassem. Foram solicitadas 5 (cinco) tarefas: apresentação pessoal, relato de uma experiência, descrição de um processo, memorial de leitura e um artigo acadêmico. Após a entrega da tarefa, eram feitas discussões teóricas sobre os critérios de produção do texto e também sobre as concepções envolvidas na produção em questão. A etapa seguinte era a da avaliação da professora, que tinha como base os critérios disponíveis nos anexos, de acordo com cada proposta, e que eram compostos pelas qualidades discursivas de unidade temática, objetividade, concretude e questionamento. Após a avaliação os textos eram lidos para os colegas, que também contribuíam com considerações e em seguida os alunos recebiam os pareceres com sugestões de adequação do texto para atender às qualidades discursivas.  Os pareceres de todos os textos ficavam disponíveis para todos os alunos. Os textos eram reescritos e entregues para nova avaliação, junto com um diário dialogado, a primeira versão do texto e a lista de critérios previamente disponibilizada. O diário servia para que os alunos pudessem colocar abertamente e de maneira menos formal as dificuldades e aprendizados adquiridos durante o processo.
Para fins de análise das dificuldades associadas à unidade temática, são utilizados exclusivamente os textos produzidos pelas autoras da pesquisa, bem como suas reescritas, diários, pareceres e a lista de critérios de cada produção. Inicialmente analisamos o grau de cumprimento do critério da unidade temática nas primeiras versões, com base nos pareceres, e após comparamos com a reescrita para medir o grau de melhora. Nos diários mapeamos as principais dificuldades registradas pelas alunas no cumprimento do critério. E por fim utilizamos também os pareceres de todos os alunos apenas para mensurar o percentual dos que conseguiram cumprir o quesito antes das orientações para reescrita. Consideramos também na análise dos textos das autoras a diferença no nível acadêmico, visto que a aluna A é caloura e a aluna B já possui nível superior.


ANÁLISE DE DADOS

Quadro 1 – Unidade Temática (UT) entre as Versões
Tarefas
Aluna A
Aluna B
1º Versão
2º Versão
1º Versão
2º Versão
Texto 1
Sem título
“As letras e eu”
“O amigo acaso”
“O amigo acaso”
UT
SIM
SIM
NÃO
SIM
Texto 2
“As reflexões da adolescência”
“Mudando de colégio”
“Do amor como vontade”
“Do amor como vontade”
UT
NÃO
NÃO
NÃO
SIM
Texto 3
“A fazenda de um animal só”
“A fazenda de um animal só”
“Como fazer amor”
Fazer amor: orientações gerais”
UT
NÃO
PARCIALMENTE
SIM
SIM
Texto 4
“O processo de letramento”
“O desafio”
“A importância do letramento”
“A importância do letramento”
UT
NÃO
SIM
SIM
SIM
Texto 5
“A causa da falta de tempo na vida universitária”
“A causa da falta de tempo na vida universitária”
“A natureza sócio-histórica do tempo para universitários”
“A natureza sócio-histórica do tempo para universitários”
UT
SIM
SIM
SIM
SIM




Quadro 2 – Unidade Temática nos Diários
Aluna A
Tarefas
Trechos do Diário
Texto 1
Foi sem duvida uma experiência ótima já que para muitos, como eu, não costumo mostrar meus textos para outras pessoas a não quem for me avaliar. Pude então perceber como o meu texto e a forma como eu transmito o seu conteúdo deste são interpretados e entendidos pelos leitores.
Texto 2
Ao escutar os textos dos colegas nas aulas expositivas já consigo perceber se o texto possui unidade temática (mantem o mesmo assunto central ao longo do texto) [...] a prática de escrever e reescrever está me possibilitando uma analise mais detalhada do meu texto[...]
Texto 3
As dinâmicas de sala de aula estão se tornando cada vez mais fundamentais para o momento de reescrita, auxiliando no direcionamento do texto e nas futuras alterações de pontos com excesso de informações ou informações mal compreendidas.
Texto 4
Nada consta.
Texto 5
Nada consta.
Aluna B
Tarefas
Trechos dos Diários
Texto 1
Trabalho bem com parâmetros, me sinto mais segura com eles e produzo melhor, então procurei ler os textos do blog e os pareceres. Li todos. Isso me ajudou bastante, pois pude ver os erros mais comuns e creio que consegui fugir da maior parte deles. [...] Em relação ao parecer, achei que me deu o norte que precisava para ajustar o texto. As colocações foram bem claras e não tive dificuldade em seguir as orientações.
Texto 2
Inicialmente achei que não tinha compreendido bem a proposta, mas creio que me aproximei bastante do solicitado. [...] Quanto ao parecer foi bem específico e direto, não tenho nada a acrescentar ou discordar. A segunda reescrita foi consideravelmente mais fácil pra mim, talvez por já entender os mecanismos e também por já estar mais familiarizada com os critérios, no sentido de compreender mais adequadamente como eles se expressam no texto.
Texto 3
Nesta atividade consegui me aproximar mais facilmente da proposta talvez por ter a possibilidade de fazer um texto mais próximo de algo “técnico” ou “teórico” como é a descrição de um processo.
Texto 4
Nada consta.
Texto 5
Nada consta.




Quadro 3 – Unidade Temática nos Pareceres
Aluna A
Tarefas
Trechos dos Pareceres
Texto 1
No seu caso, a unidade temática parece bem clara: a paixão pela letras. Como sugestão e, apenas sugestão, você poderia manter essa unidade temática, investindo mais ainda nela.
Texto 2
O título já possibilita uma ampla interpretação, quando você utiliza a palavra “reflexões”, e essa subjetividade perpassa o seu texto, prejudicando a concretude e, por conseguinte, a unidade temática.
Texto 3
É importante relembrar a ideia de unidade temática. Nessa proposta ela é um reflexo daquilo que você escolheu descrever, seja um processo ou uma coisa. No seu texto há uma oscilação de unidade temática [...]
Texto 4
A temática do seu texto parece, em primeiro lugar, ser sobre aprender a ler, [...]. Contudo, você desenvolve a temática sendo a respeito do seu processo de começar a ler livros. Eu sugeriria que você debatesse o termo antes de desenvolver o tema; pois dessa forma seu texto fica mais objetivo e, consequentemente, mais claro ao seu leitor.
Texto 5
Nada consta.
Aluna B
Tarefas
Trechos dos Pareceres
Texto 1
O que parecia ser uma unidade temática clara, [...] torna-se questionável [...]. Seria importante, para manter a unidade temática, optar por uma dessas características capazes de te descrever.
Texto 2
As informações anteriores sem dúvida colaboram para essa informação, mas ao mesmo tempo elas parecem tirar o foco do momento que seria a unidade temática propriamente dita.  Ou seja, você poderia ter muitos textos em função desse primeiro [...]
Texto 3
[...]a unidade temática se mantém, o texto é bem objetivo, o pressuposto estabelecido de que o leitor não sabe muito sobre o processo é muito bem adequado devido a proposta de escrita.
Texto 4
Seu texto parece cumprir muito bem com a proposta de escrita. Você escreveu sobre sua lembrança marcante de leitura mantendo unidade temática e sendo objetiva.
Texto 5
Nada consta.
           


Quadro 4 – Unidade Temática na Produção Geral
Textos
Total de Alunos
Problemas Unidade Temática
Percentual
1
14
12
85%
2
14
11
78%
3
14
5
35%
4
15
3
20%
5
13
3
23%

Com base na comparação entre as primeiras versões e suas reescritas, percebe-se que o parecer e o diário dialogado auxiliaram muito na construção do conhecimento do aluno. Na primeira proposta foi solicitada uma apresentação pessoal para ser lida em sala de aula e, seguindo a estrutura didática da professora, nenhuma grande orientação foi dada até ser realizada a primeira versão.
De forma geral, a turma não conseguiu ter uma unidade temática clara nas suas primeiras versões, conforme se pode observar no Quadro 4. A Aluna A, por exemplo, consegue manter a interlocução do texto por ter feito uma mera listagem de característica sem grandes explicações, o que torna o texto apenas um bloco de informações, porém com unidade temática. Já a Aluna B não contempla esta qualidade na sua primeira versão, mas após o parecer a unidade temática é desenvolvida com êxito, conforme se pode observar no exemplo 01:

(01)“Nascida e criada na cidade de Porto Alegre, sou uma jovem mulher de apenas 20 anos que descobriu a paixão pelas letras observando bons exemplos de professores que lecionavam com dedicação, com inovação e principalmente com prazer.”

 O terceiro e o último parágrafo retornam ao assunto central que é “a paixão pelas letras”. Após o parecer, a unidade temática é ampliada e desenvolvida, mas acaba perdendo a sua qualidade por possuir um excesso de informações.
A Aluna B começa seu texto descrevendo a relação que ela tem com o acaso e como o acaso interfere na sua vida, conforme o trecho abaixo:

(02)   “Então, para resolver a questão, ponderaram que a melhor solução seria fazer um sorteio entre os possíveis nomes. Eles consideraram razoável o fato de que o nome que eu carregaria para o resto da vida fosse fruto de nada mais do que mero acaso.”.

No entanto, no terceiro parágrafo é inserido um novo tópico, a indecisão. Apesar de sua participação ser pequena, este novo tópico abre uma possibilidade para um novo tema central, dividindo o leitor entre os conceitos de “acaso” e “indecisão”. O que podemos observar na reescrita da Aluna B é que ela soube acatar muito bem a recomendação da professora para solucionar o problema da unidade temática. A sua segunda versão apresenta ideias claras, retirando a “indecisão” como segundo aspecto de caracterização e colocando a segurança, a confiança e a experiência como contrapontos, como é demonstrado neste trecho:

(03)   “Tanto é assim que hoje, dando uma rasteira no acaso, inicio uma nova graduação por nenhum outro motivo que não seja a minha própria vontade.”.

 Na segunda proposta, que tinha como objetivo relatar uma experiência que causou um aprendizado, tanto a Aluna A quanto a Aluna B não conseguiram obter a unidade temática nas suas primeiras versões.
A Aluna A desenvolveu uma segunda apresentação pessoal, logo, não cumpriu com a proposta do texto. O texto se mostrou muito subjetivo e com muitas palavras abstratas, o que prejudicou a identificação da unidade temática, que deveria ser a aprendizagem adquirida da convivência com pessoas de diferentes classes sociais, conforme mostra o exemplo 04:

(04)   “A quantidade de dinheiro que você tem ou deixa de ter não define o seu caráter.”

Essa conclusão aparece somente no penúltimo parágrafo e de forma pouco desenvolvida. Mesmo após o parecer a Aluna A não consegue definir sua unidade temática, faltando selecionar melhor os elementos com os quais deseja trabalhar.
Já a Aluna B, obteve um problema mais especifico que foi devidamente corrigido após o parecer. Seu texto traz um questionamento seguido do aprendizado adquirido, mas não tem unidade temática, pois proporciona mais de um caminho a ser seguido, como pode ser visto no exemplo 05:

(05)   “Minha mãe fuma, meu pai não. Não sei se há uma explicação psicanalítica pra isso, mas o fato é que eu e minha irmã começamos a fumar, enquanto meus dois irmãos jamais tiveram qualquer interesse em cigarro, chegando a ter, inclusive, verdadeira ojeriza.”
Com base neste trecho pode-se supor que o assunto central será o momento em que a autora começou a fumar, já que ele se estende até o terceiro parágrafo. Entretanto, o assunto é modificado para outro acontecimento, a gravidez da irmã e a convivência com a sobrinha, o que acaba por abrir um terceiro tópico, que seria a decisão de para de fumar. Esse tópico acaba revelando-se ser o aprendizado adquirido. Após as orientações a Aluna B consegue definir sua unidade temática, optando pelo tópico “parar de fumar”, destacando como motivo principal o amor que cultiva por sua sobrinha, como fica claro no exemplo 06:

(06)   “No dia em que parei de fumar não tive a real proporção daquele acontecimento; agora eu sei o quanto ele foi importante pra ela. Eu cresci vendo minha mãe fumar, não tive outro parâmetro. Ela está crescendo vendo a mãe e avó fumando, mas a dinda parou.”

Na terceira proposta foi solicitada a descrição de um processo, podendo ser uma atividade cotidiana ou um tutorial (modo de fazer algo).
A Aluna A descreveu uma atividade cotidiana com boas imagens, o que ajuda o leitor a visualizar a cena, mas não manteve uma unidade temática.  Seu texto inicia com uma listagem de tarefas, dentre as quais qualquer uma teria potencial para se tornar a tópico central do texto, e é neste ponto que o leitor se perde. O interessante do texto é o mistério de descobrir de quem a autora estaria falando, já que no título temos uma dica do que se trata: “A fazenda de um animal só”.
O texto apresenta duas possíveis unidades temáticas: (a) o cotidiano de acordar cedo e seus rituais; ou (b) como devemos limpar e alimentar um bichinho. Após sugestões constantes no parecer, a Aluna A opta por manter como unidade temática o processo de limpar e alimentar o bichinho, mas ainda assim acaba por deixar pontos abstratos que desviam o leitor, como no exemplo 07:

(07)   “Faço um sinal para que ele espere mais um pouco, “já vou te limpar!” É a mesma coisa todo dia.”

Como a autora manteve um segundo tópico, relacionado à rotina, foi atingido apenas parcialmente o conceito de unidade temática.
  A Aluna B já na sua primeira versão consegue estabelecer a unidade temática, o que reflete em um parecer com pequenas observações e solicitando poucas mudanças. Seu texto segue mais o modelo de tutorial e tem como objetivo ensinar “Como fazer amor”. Talvez por ser um tema ainda polêmico, a autora não quis estender-se em descrições de imagens, o que interferiu um pouco na concretude, mas não atrapalhou a unidade temática. O que prejudicou a leitura foi o excesso de contextualização, que transformou o texto em algo diferente do que o titulo propunha. No primeiro parágrafo temos uma tentativa de definir o “fazer amor”:

(08)   “Quanto ao limite máximo, alguns argumentam que havendo mais de duas pessoas o processo seria descaracterizado, passando a se chamar ménage ou suruba, mas não há um consenso quanto a isso. Para tratarmos do assunto de maneira mais plural, o mais prudente é estabelecer que não há um limite máximo de pessoas, sendo apenas importante ressaltar que quanto maior o número de envolvidos, mais complexo se tornará o processo.”

Como sugestão da professora, o mais indicado seria alterar o título para adequá-lo à proposta do texto, que trazia mais orientações do que propriamente dizia “como” algo deveria ser feito. A sugestão foi aceita e o título foi alterado para “Fazer amor: orientações gerais”; com a sugestão acatada pela autora, a unidade temática foi contemplada.
  Para a quarta proposta foi estabelecida um assunto mais acadêmico, a elaboração de um memorial de leitura.
A Aluna A não obtém uma unidade temática na sua primeira versão, pois em primeiro lugar a temática parece ser sobre aprender a ler, pois é usado o termo “letramento”, como mostra o trecho:

(09)   “Não demorei muito para tornar-me uma pessoa alfabetizada, mas o processo de Letramento só foi começar a ser desenvolvido por volta dos meus quinze anos.”.

Entretanto, o tópico desenvolvido pela autora reverte-se para o processo de começar a ler livros. No seu parecer sugere-se que além de utilizar citações e paráfrases para fundamentar seu artigo, que seja antecipada para o primeiro parágrafo a unidade temática escolhida. Na reescrita percebe-se que a unidade é estabelecida como um “relato da primeira experiência com um livro em outro idioma”, mas ainda necessitaria de um parágrafo de conclusão que retomasse a unidade do texto.
A Aluna B desenvolveu o seu texto definindo a sua unidade temática já na sua primeira versão, portanto não precisou realizar uma reescrita ou nenhum ajuste. Desde seu primeiro parágrafo, identifica-se a relação que existe entre a autora e a leitura, o que é seu ponto central durante todo o texto.
Na quinta e última tarefa a proposta era esboçar um artigo, com o auxilio de toda a turma. Em sala de aula foi estabelecido qual seria o tema, como ele seria delimitado, qual o objetivo que texto deveria apresentar seu problema, suas hipóteses, deixando os argumentos e contra argumentos como uma decisão individual. O tema escolhido foi “O tempo”, mais precisamente “A natureza socioistórica de tempo para universitários”. Tanto a Aluna A quanto a Aluna B obtiverem na sua primeira versão uma unidade temática bem estabelecida, sendo também a segunda proposta com menos erros de unidade temática da turma inteira, conforme se pode observar no Quadro 4.
Para a Aluna A foi solicitada alterações em outros pontos, tais como coerência e coesão, pois as ideias estavam mal formuladas, o que prejudica a unidade temática do texto, conforme pode-se observar no exemplo 10:

(10)   “Antes mesmo de o aluno ingressar na vida acadêmica, a situação de como as suas tarefas irão ser organizadas de qualquer forma ou melhor dizendo, não terá muita organização, já é de seu conhecimento”.

Mesmo após o parecer o texto não foi alterado satisfatoriamente, apresentando ainda informações mal colocadas no texto. Já a Aluna B fez alterações somente na formatação do texto e alguns aspectos formais, nada que atrapalhasse ou comprometesse a unidade temática.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Buscamos com esta pesquisa identificar e analisar as dificuldades associadas ao cumprimento do critério de unidade temática na produção textual. Os resultados mostram que a maior parte dos alunos, mesmo em nível universitário, ainda encontram dificuldades em cumprir todos os critérios de uma produção textual satisfatória, o que é indicado principalmente pelo percentual de alunos que não conseguiu atingir o critério de unidade temática na primeira versão de seu texto. Esse resultado leva a crer que, de fato, não há um trabalho satisfatório de produção textual no ensino básico, possivelmente associado à ausência ou pouco desenvolvimento do processo de letramento. No entanto, como os alunos tiveram um progresso ao longo da disciplina, aumentando consideravelmente seu grau de cumprimento do quesito, é possível que a falta de conhecimento prévio seja também um dos fatores que contribuem para a dificuldade, pois após apropriarem-se dos conceitos e orientações, seu desempenho foi drasticamente alterado.
A influência do conhecimento prévio no desempenho do aluno pode também ser observada na diferença entre as dificuldades apresentadas pelas alunas A e B. A aluna B, que possui formação universitária, apresentou maior facilidade em se apropriar das orientações para a reescrita, enquanto a aluna A em alguns casos não conseguiu atender às solicitações dos pareceres. Isso nos mostra que a familiaridade com a escrita acadêmica pode influenciar diretamente a produção de textos nesse contexto. Os trechos dos diários corroboram essa análise, quando observamos que a aluna A apresenta em seus relatos aspectos mais gerais de um primeiro contato com a escrita formal e como está se relacionando com ela, enquanto a aluna B busca parâmetros para iniciar o processo e consegue verificar as falhas e corrigi-las com base nos critérios oferecidos.
De maneira geral, pode-se observar que a prática de escrita formal não é algo simples para a maioria dos alunos. A qualidade discursiva de unidade temática, conforme já mencionado, é a que dá sentido ao texto; é, portanto, de suma importância notar que a maior parte dos alunos não foi capaz de cumprir esse critério, o que demonstra que mesmo alunos em nível superior não possuem a habilidade de escrever um texto preciso e coerente. Em contrapartida, as evidências apontam que a prática na produção textual, mesmo que desenvolvida tardiamente, pode propiciar bons resultados.
A pesquisa foi especialmente interessante para nos ajudar a compreender as dificuldades envolvidas no processo de criação de sentido através da escrita e que escrever é um ato de compartilhar, onde o outro deve ser considerado. Observamos que conhecer os critérios nem sempre é o mesmo que apropriar-se deles e que, mesmo que se consiga fazer isso, nem sempre é o suficiente. Entendemos que as dificuldades relacionadas à escrita dificilmente estão dissociadas da prática de leitura e que leitura e escrita são duas faces inseparáveis de um mesmo processo. E, finalmente, nos foi possível observar que a forma como a língua portuguesa vem sendo trabalhada em sala de aula não propicia aos alunos condições para uma comunicação satisfatória, principalmente no que diz respeito à escrita, e que, enquanto professores, temos grandes desafios na mudança deste quadro.

REFERÊNCIAS

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam.SP: Autores Associados: Cortez, 1989.

GUEDES, Paulo C. Da redação à produção textual: o ensino da escrita. SP: Parábola Editorial, 2009.

KLEIMAN, A. Oficina de leitura: teoria e prática. 9ª. ed. Campinas, SP: Pontes, 2002.

KOCK, I.V. & ELIAS, V.M. da S. Ler e compreender – os sentidos do texto. SP: Contexto, 2006.

MEC. Ministério da Educação. Orientações Curriculares para o Ensino Médio. Brasília: Secretaria de Educação Básica, 2006. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/book_volume_01_internet.pdf> Acesso em: 07 jul. 2016.

ROTTAVA, Lucia. A importância da leitura na construção do conhecimento. Espaços da escola. Editora Injuí. ano 9. n 35, p. 11-16, jan./mar. 2000.


ROTTAVA, Lucia. A leitura em contexto acadêmico: o processo de construção de sentido de alunos do primeiro semestre do curso de letras. Signo. V. 37, nº63, p.160-179, 2012.

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