terça-feira, 28 de junho de 2016

Comunhão por literatura

Aluno 90
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Antes de ler a série de ficção científica The Book of the New Sun, havia ouvido que se tratava de livros cuja prosa era bem complicada, com uma maneira enigmática de revelar a sua história, tal qual um Ulysses da ficção científica. Comprei-os após alguns meses, minha expectativa multiplicada pelo “tempo de fermentação” que teve. Isso fez com que minhas aproximações inicias de leitura fossem cautelosas; minhas primeiras páginas da série New Sun foram marcadas pela atenção à minúcia, pela busca de significados ocultos em cada parágrafo. Cheguei até a manter um micro-diário de anotações, anotando nomes e supondo possibilidades de desenvolvimento de trama.
Não durou muito. Não sou um leitor metódico: meu maior prazer na leitura tende a ser o “perder-me” no conteúdo enquanto fluo junto com a leitura, quase como num estado de comunhão, durante o qual eu não deixava de lançar indagações sobre o que lia, apenas não parava para registrá-las em papel. Logo cheguei a um estado no qual aceitava automaticamente as idiossincrasias do Book of the New Sun, mas também trabalhava para entendê-las. Cada detalhe oblíquo, cada implicação recebia uma atenção investigatória minha, na qual lançava hipóteses e esperava outras informações do livro que as corroborassem. Destas obliquidades, a mais importante foi o fato de que o seu narrador não é confiável, à maneira de um Dom Casmurro. Isso em particular fazia o meu coração palpitar: sempre achara que a ficção científica era um gênero criativo, embora só no campo das ideias, dificilmente inovando o texto em sua narrativa e artifícios literários.
Portanto, embora compenetrado num fluxo de leitura, mantinha uma posição detetivesca quanto ao conteúdo lido, procurando, além da confirmação de hipóteses, incoerências no discurso do narrador. Nesse sentido, posso afirmar que essa leitura não foi inteiramente um captar passivo de informações sob a ótica de “a informação está no texto”, porque, se aceitasse o texto na sua estrutura natural, sem indagar e hipotetizar, não entenderia o que faz dele uma obra notável; para a compreensão de suas nuances, tive de trazer esse estado natural do texto para dentro de mim e realinhá-lo mentalmente, formando uma nova narrativa para The Book of the New Sun dentro de mim mesmo. Ou seja, absorvi o conteúdo do livro, embora sem confiar nele como a maneira intendida de se compreender a mensagem do autor, portanto modifiquei-o internamente.
No fim, valeu a pena. Não haviam mentido para mim: a série tornou-se um gigante no meu cânone pessoal, deu-me aquela sensação de felicidade por estar vivo que temos quando lemos livros realmente bons. Foi até mesmo uma leitura de importância social para mim: participo de discussões online de ficção científica e logo compartilhei minhas impressões com outros fãs do gênero, recomendando The Book of the New Sun de maneira similar às impressões que havia ouvido antes de sua leitura, enfatizando quão implícito e denso o livro era, como um passar da “tocha” que havia recebido das outras pessoas que haviam me contado sobre o livro.
É claro, na minha interação social amplamente dita, a comunidade da ficção científica é na verdade uma fração um pouco pequena, mas, acima disso, há a supracitada sensação de estar vivo que se suscita pela leitura de livros significantes: quando compartilho minhas impressões com outros leitores, por mais poucos que sejam, tenho reprises dessa sensação, que me preenche de uma maneira que às vezes parece ser ligada a algo mais profundo que o social; é como uma ligação direta com algo mais inerente de nós seres humanos, talvez similar ao que os religiosos sentem ao ler seus livros sagrados. O fato é que uma pessoa geograficamente e cronologicamente remota de mim me capturou com uma das criações mais importantes de nossa raça, a literatura, a qual permite esse contato distante, mas não menos significativo. Talvez a sensação que os religiosos têm seja de, na verdade, terem esse contato com um autor distante; a única coisa que difere entre nós é que o texto que leio é sobre um mentiroso pouco confiável de outro planeta.








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