segunda-feira, 20 de julho de 2015

Memorial de Leitura

Reescrita
Aluno 64


Eu nunca teria imaginado o quão difícil é discorrer sobre minhas memórias relacionadas à leitura. Sempre a considerei uma parte importante da minha vida, e talvez por isso seja complicado escolher uma experiência entre tantas. Incentivada pela família, meu contato com as letras deu-se ainda cedo, por meio de histórias em quadrinho e livros infantis da biblioteca, daqueles com letra bastão em tamanho exagerado e mais ilustrações que frases. Lembro de tentar decifrar aquele código, juntando letra com letra para formar sílaba e sílaba com sílaba para formar palavra. Pouco entendia naquela época, mais interessada na lógica do processo de leitura do que em seu conteúdo.
Enquanto crescia, descobri um novo mundo, onde não era necessário criar situações e personagens, adivinhar o enredo com base nas figuras impressas. Aprendera a ler, e com isso identificar a mensagem, atribuir-lhe sentido. Cumpria os pré-requisitos básicos para imergir nas histórias e em tudo mais. Rottava (2000) explicita a relação entre o compreender e o conhecimento prévio do leitor, citando Kleiman (1995), que elucida:
A compreensão de um texto é um processo que se caracteriza pela utilização de conhecimento prévio: o leitor utiliza na leitura o que ele já sabe, o conhecimento adquirido ao longo de sua vida. É mediante a interação de diversos níveis de conhecimento, como o conhecimento linguístico, o textual, o conhecimento de mundo, que o leitor consegue construir o sentido do texto; […] Pode-se dizer com segurança que sem o engajamento do conhecimento prévio do leitor não haverá compreensão. (KLEIMAN, 1995, p. 13)
Eu, jovem leitora, preocupada em explorar a ficção e decidida a ler tudo que podia ser lido (livros, revistas, legendas na televisão, bulas de remédio, outdoors, nada escapava), começava a construir a base sobre a qual todas as leituras posteriores apoiar-se-iam. O conceito conjura a imagem de uma estrutura complicada de blocos sobrepostos, alguns substituídos, de diferentes cores, posicionados em locais estratégicos. A cada nova leitura, uma experiência singular: um novo bloco. É simples, então, imaginar que esse arranjo é único para cada pessoa - cada leitor terá uma interpretação diferente de um texto, com base em seu conhecimento prévio. E é perfeitamente possível que um mesmo leitor construa novos sentidos a cada leitura; a passagem do tempo e novas experiências farão com que a mensagem se modifique. Isso acontece também comigo: ao passo que a vida moldou minha maneira de ver o mundo e minha personalidade, retornar aos livros favoritos causou reações adversas. Ainda que buscasse relembrar, encontrar novamente o encantamento da primeira vez, não raro acabei desapontada.
A lembrança que melhor ilustra essa situação está relacionada ao livro Crepúsculo, da autora Stephenie Meyer. O volume chegou em minhas mãos quando eu tinha apenas treze anos, na forma de presente de formatura do Ensino Fundamental. Apesar de nunca ter ouvido falar a respeito da obra, minha madrinha garantiu que era uma ótima história de amor e aventura, recomendada por outras meninas da minha idade. Aos treze anos, julguei a história envolvente e interessante. Aos dezessete, quando quis rememorar as sensações da primeira leitura, o livro me pareceu infantil e abandonei-o antes de chegar à metade. Hoje, aos dezenove, ele serve como peso para papel na estante. O que me coloca em uma posição desagradável: há muitos livros que gostaria de revisitar, por reconhecer sua importância em meu desenvolvimento como leitora e como pessoa. David Martín, personagem de Carlos Ruíz Zafón em O Jogo do Anjo, foi quem me serviu de inspiração para começar a escrever. Apesar da desorganização e mau humor característicos do personagem, eu estava apaixonada pela trama, por Barcelona, e sonhei ganhar a vida escrevendo histórias, tal como ele. Talvez hoje, ao folhear as mesmas páginas, encontre apenas um escritor amargo e doente, e não tenho coragem de retornar, temendo profanar as memórias com minha nova percepção de mundo. A boa notícia é que nunca esgotarei as possibilidades; para achar um texto que complemente a vida cotidiana, aqueça o coração ou amplie meus horizontes, basta perceber que é hora de abandonar os títulos que me são tão queridos e encontrar um novo amor.

REFERÊNCIAS
ROTTAVA, Lucia. A importância da leitura na construção do conhecimento.  In Espaços da Escola, ano 9, n 35, p. 11-16, 2000.
KLEIMAN, Angela. Texto e leitor: aspectos cognitivos da leitura. 4ª ed. Campinas: Pontes, 1995.

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