Aluno 53
Reescrita
Lembro da primeira vez em que estive em uma biblioteca tão bem quanto se deve lembrar de todas as “primeiras vezes” de uma vida. No final de um corredor, na parte mais recôndita do prédio, em uma antiga sala de aula com iluminação e ventilação precárias, estavam, nas estantes enferrujadas, em perfeita organização, os poucos exemplares de que minha antiga escola dispunha à época. Era sexta-feira, eu tinha sete anos e um objetivo: queria um livro com capítulos. No ápice da minha infância, nada era mais maduro do que usar marcador de páginas e ler um livro com capítulos. Estava disposta a ser flexível em relação à história, à espessura e à quantidade de gravuras. Mas dos capítulos eu não abriria mão.
Cheia de coragem e morrendo de vergonha, fiquei na ponta dos pés, me apoiei no balcão e expliquei meu plano à dona Salete, a bibliotecária. Ela sorriu para mim, como sorriria tantas outras vezes ao longo das minhas inúmeras expedições àquele lugar. Segurando a minha mão, me levou a uma estante com uma plaquinha em que se lia “Literatura Infantojuvenil” e me deixou lá, sozinha, contemplando uma imensidão de possibilidades literárias.
Perdida em meio a nomes e personagens que, até então, eu desconhecia, não reparei que o recreio estava terminando. O soar da sirene me despertou e, assustada, percebi que ainda não havia feito minha escolha. Olhei apreensiva para a bibliotecária que – gentil como sempre – veio ao meu auxílio. Com delicadeza, dona Salete puxou um exemplar de cor esverdeada e disse que eu “com absoluta certeza” gostaria daquele. Peguei o livro sem pensar, assinei meu nome no formulário de retirada e prestei atenção às recomendações. Eu deveria cuidar do objeto e devolvê-lo na próxima semana.
Enfiei o livro dentro do casaco azul com o emblema da escola e fechei o zíper. Meio desajeitada, corri até a sala de aula e, com cuidado, coloquei minha nova conquista dentro da mochila, entre um caderno e outro, para não estragar. Os minutos demoraram uma eternidade a passar, e o trajeto até a minha casa pareceu ter uma centena de milhas. Foi só quando finalmente entrei no meu quarto que pude, com as mãos trêmulas, contemplar o livro que a bibliotecária havia me entregue: “Peter Pan”, escrito por J. M. Barrie.
Comecei a ler naquele mesmo instante e em pouco tempo estava absorta pela viagem de Peter, Wendy, João e Miguel à Terra do Nunca. O encantamento durou todo o final de semana e meu deleite aumentava a cada página. Conheci piratas, índios, fadas e sereias, me perguntei por que os meninos perdidos não queriam crescer, quem eram suas mães e se um dia voltariam para casa. Fiquei com raiva quando o Capitão Gancho sequestrou a Princesa Tigrinha e enganou a cativante Sininho. Gritei de alegria quando o vilão foi finalmente subjugado pelo mocinho. E, o mais importante, descobri que eu não precisava brincar de esconde-esconde na hora do recreio ou emprestar meu lápis de cor favorito para fazer novos amigos.
“Segunda estrela à direita, e direto até amanhã de manhã. Peter havia dito a Wendy que esse era o endereço da Terra do Nunca; mas nem sequer os pássaros, mesmo se levassem mapas e os consultassem nas esquinas onde ventava mais, teriam conseguido encontrar o lugar com essas instruções. [...] Peter simplesmente falava a primeira coisa que lhe vinha à cabeça”. (BARRIE, 2012; p.71)
No domingo à tardinha, rápido demais e sem me dar conta, cheguei ao final do livro. Lá estava ele: o último capítulo. E eu, que tanto queria meus capítulos, me deparei pela primeira vez com a sensação pré-nostálgica de não querer ler o desfecho de uma história. Deixei o “Peter Pan” da biblioteca sob o travesseiro e fui me oferecer para regar as plantas, lavar a louça ou levar o cachorro para passear. Qualquer atividade parecia mais convidativa naquele momento, pois eu não estava pronta para me despedir, ainda não.
“As histórias que lemos e ouvimos nos remetem sempre às nossas próprias histórias e às nossas experiências pessoais. [...] as narrativas são polissêmicas – ou seja, têm múltiplas possibilidades de interpretação; [...] a arte de narrar pressupõe alguma transgressão que contraria as expectativas de quem ouve ou de quem lê; elas ‘criam realidades’”. (ARCOVERDE e ARCOVERDE, 2007, p.11)
Exatamente como mostra o fragmento acima, a trama de “Peter Pan” havia me transportado a outra realidade na mesma medida em que estabelecia uma conecção com minha própria realidade, de criança em fase de descobertas. Eu mudava a cada página, e sentia surgir em mim uma paixão que me seguiria por toda a vida.
Protelei a leitura daquele último capítulo o quanto pude, até que a quarta-feira chegou. Eu sabia que precisava devolver o livro no dia seguinte, mas não podia fazê-lo sem saber o que aconteceria com meus novos amigos. Com a atenção de quem escuta um segredo, imergi no final daquela história. E, pela primeira vez – foram tantas naquela semana! –, derramei pequenas lágrimas, de tristeza, alegria e saudade antecipada ao terminar uma leitura.
Enxuguei os olhos, fechei o livro e o coloquei em seu lugar privilegiado dentro da mochila. Em algumas horas eu o devolveria à biblioteca, ofereceria minha mão à dona Salete mais uma vez e faria minha segunda visita àquela estante cheia de ferrugem e universos paralelos. Eu me lembraria para sempre daqueles personagens, mas sabia que estava pronta para uma nova aventura.
Somente anos depois, pouco antes de terminar o Ensino Médio, em uma conversa descompromissada na porta da biblioteca, eu descobrira por que dona Salete havia me recomendado “Peter Pan”. Era o livro favorito da minha incentivadora que, como eu, havia descoberto ainda na infância, através das palavras de J. M. Barrie, os prazeres da literatura. E mais: ela me contou que a complexidade dos personagens daquele livro a encantava mesmo na vida adulta. Intrigada com o comentário e sentindo a melancolia que precede os fins – desta vez, da vida escolar – voltei àquela mesma estante, reencontrei o exemplar de capa verde e comecei a releitura daquele que viria a ser, até os dias de hoje, meu livro favorito.
“Os leitores podem fazer diferentes leituras sempre que estiverem imbuídos de um novo propósito, ou quando as leituras forem discutidas com diferentes interlocutores, isto é, o propósito ou o interlocutor direcionará as diferentes leituras”. (ROTTAVA, 1998; p. 62)
REFERÊNCIAS
ARCOVERDE, Maria Divanira de Lima; ARCOVERDE, Rossana Delmar de Lima. Leitura, interpretação e produção textual. Campina Grande; Natal: UEPB/UFRN, 2007.
BARRIE, J.M. Peter Pan. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.
ROTTAVA, Lucia. Leitura e Escrita na Pesquisa e no Ensino In Espaços da Escola; n. 26; p. 61-68; Ijuí: editora Unijuí, 1998.
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