Aluno 164
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“La literatura me salvó”, certa vez disse meu pai – sempre em espanhol – quando percebeu que eu era um tipo de pessoa que perdia muito tempo na vida, querendo vivê-la como se tempo não houvesse, ou como se já há muito eu tivesse nascido e pouco ainda me restasse. Desde minha infância, o livro era como um símbolo lá em casa; um modelo de algo que vale a pena; uma companhia que meus pais diziam ser a mais relevante, aquela que me enriqueceria por dentro e que me faria gostar de mim mesmo.
Ler é hábito; ler é gosto; ler é uma relação amorosa e, como tal, exige uma conexão entre obra e leitor, e também que isso seja cultivado. Me lembro que a partir da adolescência ou pouco antes disso, pensando ingenuamente já não ser mais possível “esquecer” de como se lê (pois já no ensino fundamental tivera excelentes experiências com Franz Kafka e Érico Verissimo, por exemplo), preteri a leitura, não necessariamente por achá-la “chata”, mas por começar a ser extremamente suscetível à distrações. Na época – e se assim fosse eu estaria mais perdido ainda – o celular não era o que é hoje. Aliás, nem era tão comum assim adolescentes terem celular. Falo de distrações que são experiências: coisas que eu via acontecer na rua, que era onde eu gostava de estar.
Se leio com prazer esta frase, esta história ou esta palavra, é porque foram escritas no prazer (este prazer não está em contradição com as queixas do escritor). Mas e o contrário? Escrever no prazer me assegura – a mim, escritor – o prazer de meu leitor? De modo algum. Esse leitor, é mister que eu o procure (que eu o “drague”) sem saber onde ele está. Um espaço de fruição fica então criado. Não é a “pessoa” do outro que me é necessária, é o espaço: a possibilidade de uma dialética do desejo, de uma imprevisão do desfrute: que os dados não estejam lançados, que haja um jogo.
Antonio Lobo Antunes, José Eduardo Agualusa, José Saramago, Fernando Pessoa, Mia Couto. O que me presentearam de livros desses e de outros autores a partir dos meus quatorze ou quinze não foi pouco. Não li nenhum. Se hoje eu os valorizo e gosto, naquele momento encontrei meu primeiro baque como leitor: queria estar junto de amigos me divertindo e conhecendo coisas novas, não lendo escritores que eram para mim de difícil compreensão, só pelo “status” de leitor. Sempre me incomodou e continua incomodando a “leitura por ela mesma”, assim, apenas para dizer que leu.
Creio que muito de nossa insistência, enquanto professoras e professores, em que os estudantes “leiam”, num semestre, um sem-número de capítulos de livros, reside na compreensão errônea que às vezes temos do ato de ler. Em minha andarilhagem pelo mundo, não foram poucas as vezes em que jovens estudantes me falaram de sua luta às voltas com extensas bibliografias a serem muito mais “devoradas” do que realmente lidas ou estudadas. Verdadeiras “lições de leitura” no sentido mais tradicional desta expressão, a que se achavam submetidos em nome de sua formação científica e de que deviam prestar contas através do famoso controle de leitura. (...) A insistência na quantidade de leituras sem o devido adentramento nos textos a serem compreendidos, e não mecanicamente memorizados, revela uma visão mágica da palavra escrita. Visão que urge ser superada.
Aos dezesseis, após ler o livro Rota 66, do jornalista Caco Barcellos, conheci duas obras que me prenderam demais na época, que moldaram grande parte das minhas opiniões, visão de mundo e até mesmo caráter; além disso – agora que peguei um deles para dar uma olhada depois de pouco mais de uma década – percebo que influenciaram na forma que escrevo e também nas profissões que eu viria a escolher exercer mais tarde. Cabeça de Porco, de Luiz Eduardo Soares, MV Bill e Celso Athayde e Abusado, do mesmo Caco Barcellos, despertaram aquela curiosidade que havia se perdido; aquele olhar fascinante pela história (no caso, história real), onde consegui compreender todo o tempo ganho enquanto da leitura – afinal, o livro podia me ensinar muito sobre aquele assunto que eu estava curiosamente vivenciando na época. Nunca esqueci, por exemplo, de Rebelde, um adolescente de classe média do Rio de Janeiro que morreu com a mesma idade que eu tinha quando li sua história retratada em Abusado:
Em reconhecimento pela coragem demonstrada em várias situações de risco, indicou um adolescente de classe média, que morava fora da favela, Dager Othon Mandarino, o Rebelde, para o comando das pioneiras bocas de asfalto, as esticas. (...) A primeira ação de Rebelde numa função de chefia do morro foi de ordem particular: salvar a mãe da opressão do padrasto. Reuniu um grupo de cinco adolescentes e invadiu o próprio apartamento onde morava em Laranjeiras, decidido a acabar com o casamento de 15 anos entre Júlia Mandarino e Antônio, o professor de judô. (...) O motivo eram as agressões sofridas pela mãe, devido às crises de bebedeira do padrasto. Para Rebelde, essa violência em casa representava a repetição das cenas que o traumatizaram na infância. No primeiro casamento, Júlia também foi muito agredida pelo pai de Rebelde, Ernesto. Ele guardou na memória a briga da separação dos pais, a que assistiu quando tinha cinco anos. (...) Cheirou cola e cocaína durante dois anos e chegou a ser detido pela polícia sem que a mãe ficasse sabendo de nada. Embora falasse para Júlia em seguir a carreira de médico, aos 13 anos Rebelde já havia deixado a escola, onde estudou até a sétima série, para viver nas ruas em busca do dinheiro da droga. Durante dois anos também conseguiu esconder da mãe o primeiro revólver que pôs na cintura. Júlia só soube do envolvimento dele com furtos quando os vizinhos o flagraram roubando toca-fitas dos carros da garagem do prédio. (...) Escondida atrás das cortinas da janela semi-aberta, ela assistiu à prisão de Rebelde. E o viu ser amarrado a um poste e espancado, aparentemente porque tinha sido confundido com Juliano. – Tu é o dono aqui, seu safado. Confessa, porra! – gritou um policial. Rebelde tentou pedir socorro para os vizinhos. – Avisem a minha mãe, eles tão me matando – gritou Rebelde. Um tiro na nuca derrubou Rebelde no chão. Uma rajada de metralhadora nas costas acabou de matá-lo.
O fato de escolher esses livros – que incluo no gênero das ciências sociais – como principais, como um novo ponto de partida em minha vida, em detrimento a escritores de alto padrão da literatura que também tive contato logo após isso, como Leon Tolstoi e Ítalo Calvino, é justamente por eles terem sido capazes de, depois de algum tempo que eu não sabia o que era isso, me fazer ficar parado em casa, lendo simplesmente – o que por si só já consistiria uma vitória –, mas, também, ao mesmo tempo, com aquela sensação de estar dentro de uma realidade, como senti com Verissimo e depois com os escritores russos, em especial Tolstoi e Anton Makarenko.
Outros escritores que conheci posteriormente e muito me influenciaram foram Edgar Allan Poe e Guy de Maupassant, autores de obras fantásticas que provavelmente não teriam me chamado a atenção não fosse eu estar extremamente aberto à novidades, novas possibilidades literárias – aquilo que me faltava quando dos presentes que ganhava aos quatorze e quinze anos. Por outro lado, já mais maduro, pude voltar a vivenciar esse rico processo de sentir-se representado num assunto, num estilo, ou melhor, numa fase da vida – mas dessa vez na ficção –, ao ler alguns malditos como Pedro Juan Gutierrez, Charles Bukowski e John Fante.
Por fim, quero dizer, em outras palavras, que se eu não tivesse tido contato com Cabeça de Porco e Abusado, talvez pudesse ter perdido o fio da meada, meu gosto pelas humanidades. O leitura já estava perdendo para a música (rolezinhos clássicos na rua, de fone de ouvido com a moda do walkman) muito espaço na formação da minha consciência social e, no entanto, ler MV Bill foi uma salvação. O seu discurso contundente saía do microfone e ia pro papel. Ali o livro voltava a ser uma realidade na minha vida. E não mais saiu.
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