sábado, 5 de agosto de 2017

Quem é a verdadeira família?

Aluno 122
Reescrita

Foi numa Sexta-feira Santa. Santa, mas que teve muito pouco de misericordiosa. Era de se esperar que, com o tempo – um longo ano desde o ocorrido –, os detalhes ficassem turvos em minha memória, nublados como aquele dia, e, no entanto, eu me lembro exatamente de cada cena, cada instante tão vívido e nítido diante dos meus olhos que é como se tudo estivesse acontecendo enquanto redijo esse texto: meu amigo desembarcando do táxi, uma mochila a tiracolo, os olhos marejados e o abraço trêmulo que me deu quando abri a porta de minha casa para ele. Foi naquele dia que realmente entendi o significado de família.
Meu melhor amigo, Miguel – vou chama-lo assim para preservar sua verdadeira identidade –, havia acabado de ser acometido pela pior das dores: a dor do abandono. Foi expulso de casa pelo próprio pai, em pleno feriado religioso, porque, assim como aquele que fora crucificado dois mil anos antes, meu amigo não se encaixava em uma sociedade que insistia em persegui-lo e a todos os seus semelhantes. Miguel era gay, e, por um descuido, havia tido seu segredo descoberto pelo pai, que, sem hesitar, lançou seus pertences porta afora e ordenou que ele nunca mais voltasse à casa. Sem saber o que fazer, Miguel apelou para sua outra família, aquela que pudera escolher, seus amigos; apelou para mim. “Posso ir pra tua casa?”, foi tudo o que ele conseguiu dizer, com a voz embargada ao telefone e o chiado da chuva ao fundo. Só pude confirmar e recebe-lo.
Mesmo em minha casa, acolhido e seguro, Miguel não conseguia pensar direito. As mentiras que lhe foram proferidas se avultavam sobre ele: que era sujo, errado, promíscuo, pecaminoso até. Renegado por aqueles que amava, imerso em profunda frustração, meu amigo foi levado a acreditar que eles estavam certos e que talvez fosse melhor ele mesmo dar um fim à própria vida. Miguel remoía o acontecido, sua expulsão brusca da casa onde havia crescido, remoía e remoía sem parar, como se mastigasse um pedaço de carne duro e cru que ele lutava para engolir, mas não conseguia. Nem a pizza que eu pedi, nem a cama confortável que eu preparei para ele, nem as roupas quentes que ele pegou emprestadas em meu armário; nada disso parecia ser suficiente para abrandar sua dor. Nunca vi tamanho pavor – da vida, do mundo, das pessoas – quanto vi nos olhos de Miguel naquela sexta-feira. Foi com muito esforço que ele pegou no sono àquela noite.
Com o decorrer dos dias seguintes, muito aos poucos, renasceu em meu amigo a vontade de viver, de lutar. Encontramos um lugar fixo onde ele pudesse ficar, um quarto de estudante com as devidas refeições, que ele podia pagar com o dinheiro que o pai ainda mandava, como se, com isso, cumprisse suas funções paternas. Miguel, assim, continuou estudando e vivendo um dia após o outro, sem contato com a família, que se limitava apenas a enviar a quantia necessária para sua sobrevivência, sem dar nem mesmo um telefonema para saber como ele estava. Não foi fácil convencê-lo de que as mentiras que ouvira não passavam disso, mentiras advindas do ódio e do preconceito, e até hoje receio que ele não esteja inteiramente convencido e que esses pensamentos ainda o assombrem; contudo, era possível vê-lo recomeçar aos poucos, tentar encontrar novos alicerces para sua vida além da família que o rejeitara.
Quando me despedi de Miguel, à porta de sua nova moradia, perguntei a ele como poderia ficar bem sem a presença da família em seu cotidiano. Lembro-me de vê-lo abrir um sorriso amargo, apertar o meu ombro e dizer: “Aqueles que lutam pela gente, e por quem a gente luta – isso é família”. Não demorei a perceber que era eu quem estivera fazendo o papel de sua família, o qual seus parentes de sangue não só haviam falhado em cumprir, como fizeram justamente o contrário, rejeitando-o em vez de acolhê-lo e aceita-lo incondicionalmente. Miguel não fora apenas expulso de casa pela família que não pôde escolher – fora expulso, sim, mas também fora acolhido por outrem (por mim, por acaso), e isso era muito mais significativo. Admirei a sabedoria tão madura de meu amigo e guardei aquelas palavras no peito, como um aprendizado que eu levaria pelo resto da vida.

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