Aluno 122
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Foi numa Sexta-feira Santa. Santa, mas que teve muito pouco de misericordiosa. Eu estava sozinho em casa, e chovia lá fora, de modo que o feriado se cercava de certa atmosfera sonolenta, que me mantinha no sofá, deitado, preguiçoso, sem vontade de fazer nada. No entanto, agora, relembrando aquele momento, sou obrigado a reconhecer que preferia que o dia continuasse tedioso, sem grandes emoções; preferia a apatia de uma sexta-feira travestida de domingo a permitir que meu melhor amigo fosse vítima da dor do abandono, de longe a pior de todas as emoções.
Meus devaneios sem sentido no sofá foram interrompidos com a ligação dele, sua voz embargada do outro lado da linha e o chiado da chuva ao fundo. “Posso ir pra tua casa?”, foi tudo o que ele conseguiu dizer. Minha mente disparou em alerta e eu confirmei, e o recebi em minha casa. Era de se esperar que, com o tempo – um longo ano –, os detalhes ficassem turvos em minha memória, nublados como aquele dia, mas me lembro exatamente de cada cena, cada instante tão vívido e nítido diante dos meus olhos que é como se tudo estivesse acontecendo enquanto redijo esse texto: meu amigo desembarcando do táxi, uma mochila a tiracolo, os olhos marejados e o abraço trêmulo que ele me deu quando abri a porta.
Miguel – vou chama-lo assim para preservar sua verdadeira identidade – havia acabado de ser expulso de casa, pelo próprio pai, porque, assim como aquele que fora crucificado dois mil e dezesseis anos antes, meu amigo não se encaixava em uma sociedade que insistia em persegui-lo e a todos os seus semelhantes. Miguel era gay, e, por um descuido, havia tido seu segredo descoberto pelo pai, que, sem hesitar, lançou seus pertences porta afora e ordenou que ele nunca mais voltasse à casa. Sem saber o que fazer, Miguel apelou para sua outra família, aquela que pudera escolher, seus amigos; apelou para mim. Amparei-o, prontamente, fazendo o possível para deixa-lo confortável e protege-lo das mentiras que se avultavam sobre ele: que era sujo, errado, promíscuo, pecaminoso até. Não demorei a perceber que era eu quem estava fazendo o papel de sua família, o qual seus parentes de sangue não só haviam falhado em cumprir, como fizeram justamente o contrário, rejeitando-o em vez de acolhê-lo e aceita-lo incondicionalmente.
Pedi a pizza favorita de Miguel, preparei-lhe uma cama confortável, emprestei-lhe roupas mais quentes. Nada disso, contudo, era suficiente para abrandar a dor em seu coração. Meu amigo estava imerso em profunda dor e frustração, renegado por aqueles que amava, levado a acreditar que eles estavam certos e que talvez fosse melhor ele mesmo dar um fim à própria vida. Não foi fácil convencê-lo do contrário, e até hoje receio que ele não esteja inteiramente convencido e que esses pensamentos ainda o assombrem. Nunca vi tamanho pavor – da vida, do mundo, das pessoas – quanto vi nos olhos de Miguel naquele sexta-feira.
Com o decorrer dos dias seguintes, renasceu em meu amigo a vontade de viver, de lutar. Encontramos um lugar fixo onde ele pudesse ficar, um quarto de estudante com as devidas refeições, que ele podia pagar com o dinheiro que o pai ainda mandava, como se, com isso, cumprisse suas funções paternas. Miguel, assim, continuou estudando e vivendo um dia após o outro, sem contato com a família, que se limitava apenas a enviar a quantia necessária para sua sobrevivência, sem dar nem mesmo um telefonema para saber como ele estava. Quando me despedi de Miguel, à porta de sua nova moradia, perguntei a ele como poderia ficar bem sem a presença da família em seu cotidiano. Lembro-me de vê-lo abrir um sorriso amargo, apertar o meu ombro e dizer: “Aqueles que lutam pela gente, e por quem a gente luta – isso é família”. Admirei a sabedoria tão madura de meu amigo e guardei aquelas palavras no peito, como um aprendizado que eu levaria pelo resto da vida.
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