Aluno 130
Reescrita
Conheci o Matheus Biteco, ex-jogador de futebol, quando ele ainda atuava nas categorias de base do Grêmio e, por isso, residiu no mesmo prédio que eu por uns anos, pois sempre morei na frente do antigo estádio Olímpico Monumental. Talvez por causa da proximidade literal que tínhamos, comecei a acompanhar sua carreira mais de perto, e sempre que nos encontrávamos pelos corredores do edifício jogávamos conversa fora.
Depois que ele saiu do Grêmio, continuamos nos falando por um tempo, até perdermos de vez o contato, mas nunca deixei de acompanhar os seus jogos e os clubes pelos quais ele passava. Até que ele voltou a jogar no sul do Brasil, em Santa Catarina, pela Associação Chapecoense de Futebol, clube que eu começava a assistir pela rápida ascensão que teve. Eu estava cada vez mais envolvida com a história desses dois gigantes, e lembro como fiquei rouca ao vibrar com a classificação da Chape para a final da Copa Sul-Americana. Era a primeira final internacional do clube e um acontecimento único na carreira do meu vizinho distante.
Mas o destino nos surpreende às vezes. Acordei na madrugada do dia da viagem da Chapecoense para a Colômbia, local do primeiro jogo da final, com um vento forte batendo na minha janela e não consegui dormir novamente. Decidi mexer no celular para passar o tempo e, ao fazê-lo, não acreditei na notícia que li: havia caído o avião que levava o time, o avião que levava meu vizinho Matheus. A Chapecoense havia saído do Brasil na tarde daquele dia para tentar conquistar a América e acabou conquistando o mundo, mas, infelizmente, não por meio do futebol.
O avião caiu em um morro a poucos quilômetros do destino final, devido à irresponsabilidade de uma companhia aérea que colocou somente o suficiente de combustível para a viagem. O voo estava tranquilo até poucos minutos antes do pouso, mas ao chegar às proximidades da cidade em que este deveria ser efetuado, houve um tráfego aéreo e outros aviões precisaram pousar antes do avião da Chape. O piloto, com medo de uma possível punição à sua companhia, decidiu não informar que talvez o combustível que havia no seu tanque não fosse o suficiente para ficar no ar esperando a hora de pousar, e apenas quando o avião estava prestes a cair ele pediu pouso com urgência. A queda aconteceu poucos segundos depois, e ao tráfego de aviões se juntaram o tráfego de sonhos, que ia do morro até o céu, de pessoas que perderam a vida de repente e o tráfego das lembranças do Biteco treinando no velho Monumental, lembranças das nossas conversas no elevador, lembranças dos lances épicos da Chape até chegar onde chegou. O resgate às vítimas do acidente foi intenso, realizado por bombeiros e moradores das proximidades, e a todo o momento chegavam notícias dizendo que o número de mortos aumentava cada vez mais. O morro em que o avião caiu virou um verdadeiro cenário do desespero de parentes e parentes dos passageiros, e a imagem dos escombros corria o mundo, causando comoção pela fatalidade do imprevisto. A queda deixou aproximadamente 76 mortos, dentre eles Matheus, meu vizinho que, de repente, não pude mais ver jogar.
O acidente com o avião da Chapecoense, desastre que tirou a vida do Matheus e de muitas outras pessoas, me deu a percepção de que a vida é a injustiça, é a ironia, pois o ocorrido deixa evidente que a qualquer momento podemos perder o que temos, ou quem temos, por simples obra do dia a dia. O Biteco e todas as outras pessoas que perderam a vida ao entrar naquele avião deixaram um vazio de uma hora para outra, porque a vida não é feita de acasos, ela é o próprio. A queda da aeronave evidencia que o destino faz de todos nós meros bonecos do abstrato, eternos candidatos a vítimas do imprevisível.
Os imprevistos de que a rotina é composta, como o acidente com o avião da Chape, deixam, pois, o aprendizado de que é preciso valorizar e amar o que se tem e quem se tem para não ser pego de surpresa, como fez o Matheus Biteco no dia em que estava se mudando do meu prédio. Ele veio bater na porta do meu apartamento para se despedir, me deu um abraço e disse “guriazinha, obrigada por tudo”. Era uma despedida de quem sabia que a vida é uma obra de casualidade, que alterna, como se fosse um modo de brincar, momentos trágicos e alegres. A Literatura, com suas frases clássicas, está aí para nos mostrar perfeitamente que “a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem”.
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