Aluno 178
1 Versão
“Se fosse outro fora outro
Se em mim houvesse certeza,
Não seria o fluido e neutro
Que ama a beleza.”
- Fernando Pessoa
“Eu sou pessoa! Palavra pessoa hoje não soa bem... pouco me importa!”*
Foi na esquina da rua Olavo Bilac com a rua Santana na casa duzentos e cinquenta e dois (252) que, às vinte e duas (22) horas, contemplei, pela primeira vez com profundidade, os poemas e a vida de Fernando Pessoa. Minha amiga Ana havia me convidado para uma palestra sobre o autor, fui mais para ver ela e conversar do que para, realmente, ouvir a palestrante. Quando cheguei ao endereço indicado, me deparei com uma fachada vermelha vivo cheia de “posters” ativistas a favor da luta de classes, grafites feministas e pró LGBT. Entrei com certa expectativa, mas, realmente, não esperava que aquela noite mudasse tanto minha vida. Passando a pequena porta olhei ao redor e estava cercada de livros, uma atendente me abordou e falou: “Oi, conhece a Livraria Baleia?” e eu respondi que não, ela me mostrou todo o local, era aconchegante e convidativo, havia diversos desenhos nas paredes, muitas plantas e, inclusive, um estúdio de tatuagem e um salão de beleza. Eu, que tinha vinte reais no bolso para comprar um café e alguma comida vegana, acabei comprando - com grande entusiasmo - um livro do Cortázar “Todos os Fogos o Fogo”.
A palestrante chamada Gabriela começou sua fala explicando um pouco sobre a vida do autor, o que não é fácil, Fernando Pessoa tinha mais de setenta (70) heterônimos e foi um homem muito recluso. A discursista se deteve nos três (3) principais heterônimos: Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Achei fascinante, uma pessoa tão complexa, poesias tão absurdamente “reais”, que conseguiam captar e expressar tão bem sensações complicadíssimas. Gabriela foi mais fundo e começou a ler diversas poesias “dos autores” em português de Portugal. Eu estava tão absorta no instante, que era como se cada palavra me apunhalasse. Naquele momento decidi e falei para a Ana - estava sentado ao meu lado - , que já foi minha professora de literatura, que eu faria letras, pois, realmente, as palavras, a literatura e a escrita eram importantes demais para mim para eu exercer qualquer profissão que trabalhasse com um assunto diferente. Ela começou a chorar e nos abraçamos no meio da palestra. Eu, minha grande amiga e Fernando Pessoa sincronizados.
No final da palestra parecia que todos estavam caminhando nas nuvens, não havia viva alma naquele lugar que não estava completamente embriagada pelas palavras de Gabriela e de Fernando Pessoa. Cheguei no balcão onde antes havia comprado o livro de Julio Cortázar e falei com a atendente, pedi para trocar pelo “Fernando Pessoa: Poemas de Álvaro de Campos” que custava o mesmo preço, pois, depois de tanta transformação, precisava me afundar no autor. Ficamos naquele ambiente de resistência conversando sobre a loucura do Pessoa, a beleza de sua obra. Naquele noite aquela livraria só “respirava” um nome.
“Se leio com prazer esta frase, esta história ou esta palavra, é porque foram escritas no prazer (este prazer não está em contradição com as queixas do escritor). (...) O texto que o senhor escreve tem de me dar prova de que ele me deseja. Essa prova existe: é a escritura. A escritura é isto: a ciência das fruições da linguagem, seu kama-sutra (desta ciência, só há um tratado: a própria escritura). Sade: o prazer da leitura vem evidentemente de certas rupturas (ou de certas colisões): códigos antipáticos (o nobre e o trivial, por exemplo) entram em contato; neologismos pomposos e derrisórios são criados; mensagens pornográficas vêm moldar-se em frases tão puras que poderiam ser tomadas por exemplos de gramática.” (BARTHES, Roland - O Prazer do Texto, 1973)
Barthes, nesses trechos, exemplifica perfeitamente a forma com que a poesia de Fernando P. se comunicou comigo naquela noite - e continua se comunicando da mesma forma, incutindo o prazer de ler, mesmo que esse prazer seja a identificação com as dores do autor -.
“Viajei por mais terras do que aquelas em que toquei...
Vi mais paisagens do que aquelas em que pus os olhos...
Experimentei mais sensações do que todas as sensações que senti,
Porque, por mais que sentisse, sempre me faltou que sentir
E a vida sempre me doeu, sempre foi pouco, e eu infeliz.
(...)
Deste desassossego no fundo de todos os cálices,
Desta angústia no fundo de todos os prazeres.
(...)
Não sei se a vida é pouco ou demais para mim.
Não sei se sinto de mais ou de menos
(...)
E ir selvagem para a morte entre árvores e esquecimentos,
Entre tombos, e perigos e ausências de amanhãs,
E tudo isto devia ser qualquer coisa mais parecida com o que eu penso,
Com o que eu penso ou sinto, que eu nem sei qual é, ó vida.
(...)
Multipliquei-me para me sentir,
Para me sentir, precisei sentir tudo,
Transbordei, não fiz senão extravasar-me,
Despi-me, entreguei-me,
E há em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente.”
(CAMPOS, Álvaro - trechos de “Passagem das Horas”)
A imagem, a sensação, a “atmosfera” que Fernando Pessoa - ou Álvaro de Campos - cria nesse poema é completamente existencialista, portanto, incute a autorreflexão no leitor, gerando um sentimento de familiaridade versus desconforto, compreensão versus perdição. Cria a contradição na mente do legente o que o torna magnífico e aberto a diversas interpretações.
Depois da fatídica noite na Livraria Baleia não parei de ler as poesias do escritor que é “habitado” por outros escritores. Comprei um livro com toda sua obra poética e, cada vez mais, reconheço o papel que ele tem na minha autodescoberta, na minha aspiração por colocar no papel o que sinto pois, lendo ele - e diversos outros escritores -, percebi que é possível transcrever sensações, viver uma fantasia com a mesma cara de realidade com que se vive na infância. A leitura proporciona essa redescoberta, esse retorno ao princípio, a pureza e a sujeira que parecem inalcançáveis na vida pacata de cada um. A fantasia é a salvação do ser.
“Sim, que ama a beleza e a nega
Nesta vida sem bordão
Que contra si mesma alega
Que tudo é vão”
-Fernando Pessoa
Nota: * Trecho da música “Conheço o Meu Lugar” de Belchior.
Referência:
ROLLAND, Barthes. O Prazer do Texto, 1973.
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