quarta-feira, 26 de julho de 2017

Construção da leitura

Aluno 153
Reescrita


Quando eu tinha 11 anos fui convidada, sem muitas opções de resposta, a auxiliar minha mãe na arrumação de alguns materiais antigos dela. Livro vai, polígrafo vem, acabei me deparando com uma capa branca com azul em que uma moça que segurava um radinho ao ouvido estava desenhada. A arte me chamou atenção, e ao reparar no título, “A Hora da Estrela”, fiquei mais curiosa ainda.

  • Quem é essa Clarice, mãe?

  • Uma autora brasileira, gosto muito dela!

  • Posso ler?

Minha mãe pensou por alguns segundos e respondeu com determinada incerteza:

- Pode...

Então separei o livro dos demais e ao finalizarmos o trabalho, o levei para meu quarto. Não abri o livro naquele dia, coloquei junto com meus materiais didáticos e lá ficou esquecido por mais alguns dias. Na semana seguinte o encontrei novamente. Mais uma vez fiquei observando a arte da capa. Lembro de achar a moça do radinho com uma expressão tão triste, por isso olhava tanto. Criei coragem, e abri. Foi uma leitura corrida, um título desconexo, um narrador confuso, uma menina tola, amigas não tão amigas assim, um final dramático. Essas foram as minhas conclusões a respeito da obra da autora que minha mãe contemplava. Oito anos se passaram e durante todos eles, sempre que alguém citava “A Hora da Estrela”, meu primeiro pensamento era “drama”.


E justamente no oitavo ano após essa leitura, o vestibular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que eu faria, contaria com questões a respeito da obra na disciplina de Literatura Brasileira. Como na lista haviam outras tantas, cheguei a conclusão de que não leria novamente esse livro para otimizar tempo.

Na mesma semana em que foi disponibilizada a lista das Leituras Obrigatórias do vestibular, resolvi consultar o acervo da minha mãe para ver o que ela tinha em casa, assim eu não precisaria pegar na biblioteca da cidade. Por azar, não havia nenhumas das outras obras listadas; porém tive a sorte de reencontrar o livro escrito por Clarice. Como eu havia decidido não o ler novamente devido ao tempo, o coloquei de volta no lugar em que estava, fechei a porta do armário e sai. Dei dois passos e parei “mas como ela morre mesmo?” fiquei me perguntando por um tempo e não encontrei a resposta. Voltei ao armário e peguei o livro de novo. Mais uma vez, dos armários da minha mãe para os meus. Porém, dessa vez não esperei a semana seguinte para ler. Após admirar mais uma vez a capa do livro, abri-o e iniciei a leitura.

Rodrigo S.M., narrador da história, já não era mais tão confuso assim. Seus dramas de busca de si lembravam os de Macabéa, obviamente, cada a seu modo. Macabéa não me pareceu mais tola, apenas não teve as orientações básicas, enquanto morou no interior, a respeito do mundo e a respeito da cidade grande, para qual havia viajado para tentar conseguir uma vida melhor. E justamente por não ter consciência das crueldades existentes no mundo é que a jovem nordestina tinha como verdade absoluta tudo que suas amigas e colegas de trabalho falavam. A nordestina, na verdade, não passara de uma pessoa que, na sua ingenuidade, vivia de acordo com as outras pessoas. Não era ela, apenas era. E quando se deu por conta que era ela, que era vista, que existia, morreu. O grand finale de Macabéa me emocionou.

Ao contrário do relato do narrador dizendo que Macabéa também havia o matado, a segunda leitura que fiz d'”A Hora da Estrela” me despertou para minha evolução na leitura. Aos 11 anos de idade, o que fiz foi uma breve leitura das palavras sem atribuir a elas um conhecimento necessário que obtive ao longo de 8 anos. O autor Paulo Freire fez uma reflexão acerca do assunto em 1989:


Refiro-me a que a leitura do mundo precede sempre a leitura da palavra e a leitura desta implica a continuidade da leitura daquele. Na proposta a que me


referi acima, este movimento do mundo à palavra e da palavra ao mundo está sempre presente. Movimento em que a palavra dita flui do mundo mesmo através da leitura que dele fazemos. De alguma maneira, porém, podemos ir mais longe e dizer que a leitura da palavra não é apenas precedida pela leitura do mundo mas por uma certa forma de “escrevê-lo” ou de “reescreve-lo”, quer dizer, de transformá -lo através de nossa prática consciente. (FREIRE, 1989, p. 13)

A releitura que fiz atribui novos significados a obra e mostrou-me a importância do conhecimento de mundo para a interpretação de textos. A leitura vai além da junção de palavras em uma frase, essas palavras em determinadas situações podem carregar valores distintos que necessitam de sabedorias distintas.



Referências:

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São

Paulo: Autores Associados: Cortez, 1989.

LISPECTOR, Clarice. A Hora da Estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

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