Aluno 154
Reescrita
Eu e a Luana costumávamos nos encontrar no apartamento dos pais dela quando eles viajavam, o que acontecia pelo menos duas vezes por mês, já que o seu Van Parsen, filho de um holandês podre de rico, era completamente viciado em vinhos (fazia parte de clubes de degustação e tudo mais) e tinha como objetivo de vida conhecer as vinícolas sobre as quais falavam as centenas de livros - os únicos que lia - que preenchiam a estante de um dos cantos da cobertura em que morava com a esposa, a dona Roberta Van Parsen, mãe de sua única filha, e essa filha, a minha amada Luana, com títulos como: “O Vinho e a História”; “A Uva e o Milagre: Atlas do Vinho”; “Como Beber Vinho”; “1001 Vinhos Para Beber Antes de Morrer”. Dessa vez, eles tinham ido para a África do Sul com o vizinho do andar de baixo e a esposa dele. Foram na quinta-feira e iam ficar três dias fora de casa para conhecer cinco vinícolas, uma delas no sul de Moçambique e as outras quatro na África do Sul.
A Luana me chamou no whats app logo que eles saíram de casa, me chamando pra ir lá:
— Carlos, o pai e a mãe foram pra África do Sul. Saíram de casa agora. Vem pra cá!
Ao que eu respondi:
— África do Sul?! Eu nem sabia que faziam vinho na África do Sul…
— Pois é, meu pai vem falando feito um louco nas últimas duas semanas sobre a uva de lá, que não-sei-quem falou não-sei-o-quê e ele ficou pirado nisso, queria porque queria ir conhecer.
— Tá, enfim, vou pra aí, então. A Cecília não tá?
— A Cecília não trabalha na sexta, ela vai vir de novo na segunda, só.
— Tranquilo. Posso levar o Cristóvão e a Júlia?
— Pode, sim.
— Tá, daqui a pouco tô aí. Beijo.
— Tá. Beijo.
Depois de uma hora, peguei minha moto e fui até a casa dela, onde já estavam os meus amigos e a Luana tomando, cada um, uma cerveja. Peguei uma outra pra mim e disse pra eles que não deixaria que chegasse ao ponto de precisar do "velho ritual" pela manhã outra vez, porque da última eu já tinha quebrado um dos copos grandes da casa da Luana, e agora só tinha mais um; e fizemos o que sempre fazíamos: ligamos o som da sala e ficamos na sacada, sentados nas poltronas que tinham lá, dois de nós em uma, os outros dois em outra, bebendo e conversando no escuro sobre o que quer que fosse, dividindo olhares entre o horizonte amplo da cidade de Porto Alegre à noite, onde piscavam luzes por toda parte; o céu, onde piscavam poucas luzes, ofuscadas pelas da cidade; e nós, onde brilhavam, vez que outra, os olhos, que refletiam algo.
Naquela noite nos excedemos, e a única capaz de apontar, na manhã do outro dia, quem tinha a culpa pelo delito era a Júlia.
Eu vi a Luana acordando, meio cambaleante, encostando-se às paredes e resolvi ir atrás, pensando que o que vinha pela frente era o "velho ritual" de ir até o armário do corredor e pegar dois Engov; depois ir até a cozinha sem cair ou derrubar nenhum dos quinhentos porta-retratos que ornavam todas as paredes do apartamento, encher o copo grande que tem lá com água da torneira; cuidadosamente ir com o montante até o banheiro da sala e se preparar pra parte poética do processo: ajoelhar-se de frente para o vaso, diluir o santo-remédio no copo d'água, rezar a oração do bêbado - que consiste em prometer que nunca mais vai beber e pedir clemência a de Deus - e depois finalmente vomitar em cinco segundos, se perguntando o que tem dentro daquela porcaria que acabou de beber. Esse processo e o acréscimo de ficar uns cinco minutos abraçado ao vaso, respeitando os efeitos do "pós-velho-ritual", que podiam vir - e normalmente vinham - normalmente fazia o gosto pela vida voltar. Mas quando me levantei e abri a porta do quarto a Luana não tava ali no armário do corredor, então resolvi fazer meu esquema sozinho. Sentia minha barriga como que sendo moída por jogadores de futebol invisíveis que não cansavam-se de chutá-la, enquanto minha cabeça parecia ter uma agulha enfiada até a metade em cada têmpora. Tudo pulsava. Fui até a cozinha me segurando nas paredes, sem derrubar nada, como reza o manual. Chegando lá, vi duas garrafas de vinho abertas e vazias, cercadas por incontáveis garrafas de cerveja também vazias em cima da mesa e previ o que tínhamos feito na noite anterior.
— Foi o Cristóvão quem teve a ideia. Tu disse que nem a pau, mas quando eu e o Carlos apoiamos, depois de um pouco de insistência tu falou que tudo bem, que não ia fazer diferença. — dizia a Júlia, olhando, meio cabisbaixa, pra Luana, pras garrafas e pra mim, que acabara de chegar ali e estava parado na soleira da cozinha.
Luana não tinha expressão. Permanecia estática, olhando fixamente para as garrafas. Eu estava parado, boquiaberto, e apenas pensava “meu deus, meu deus, meu deus, meu deus...”, mas sem dizer palavra. Júlia acudia a dona da casa, dizendo repetidamente que tudo ficaria bem. Cristóvão dormia no sofá da sala com a boca aberta, respirando sonoramente.
Quando Luana, cerca de cinco minutos depois do silêncio que se fez - silêncio que seria completo, não fosse a respiração de Cristóvão, que ainda dormia - conseguiu falar algo, foram estas as palavras que eu e Júlia ouvimos:
— A gente vai ter que comprar dois vinhos iguais aos que a gente bebeu. O meu pai fala pra mim desde os meus 15 anos que se um dia ele visse faltar uma garrafa de vinho em casa, ele faria uma investigação e mataria a mim, à minha mãe ou à Cecília, a quem ele descobrisse ter pego o vinho.
Ela disse isso olhando fixamente para um ponto no chão. Eu e Júlia tremíamos. Ninguém disse mais nada. Luana voltou para o quarto e se trancou lá.
Eu e Júlia resolvemos iniciar as buscas pelos vinhos de seu Van Parsen na internet. Ao encontrarmos os vinhos em lojas locais e comparar preços, encontrando os mais acessíveis, acordamos Cristóvão, que se contorcia de dor ao acordar, tamanha era a sua ressaca. Perguntamos a ele, mostrando as duas garrafas vazias de vinho, se ele se recordava do ocorrido. A resposta dele veio com um arregalar surpreendente de olhos, ao que repliquei, sem expressão alguma na voz:
— Nós vamos ter que comprar outras iguais e rachar entre os quatro.
Cristóvão perguntou o preço e eu apenas coloquei o notebook aberto no site de vinhos diante de seus olhos. Sua resposta foi um olhar inexpressivo a um canto qualquer da sala de estar, o que me fez lembrar de algo que meu pai costumava fazer quando eu chegava do colégio ou da escolinha de futebol com algum machucado: ele olhava para mim com um sorriso no rosto e beliscava alguma outra parte do meu corpo, que não a machucada, e dizia, rindo “uma dor se cura com outra”. Naquela manhã, na cobertura dos Van Persen, eu havia aprendido uma maneira mais eficiente que o "velho ritual" para curar uma ressaca.
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