sexta-feira, 28 de julho de 2017

Sábios conselhos perduram

Aluno 154
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Eu e a Luana costumávamos nos encontrar no apartamento dos pais dela quando eles viajavam, o que acontecia pelo menos duas vezes por mês, já que o seu Van Parsen, filho de um holandês podre de rico, era completamente viciado em vinhos (fazia parte de clubes de degustação e tudo mais) e tinha como objetivo de vida conhecer as vinícolas sobre as quais falavam as centenas de livros - os únicos que lia - que preenchiam a estante de um dos cantos da cobertura em que morava com a esposa, a dona Roberta Van Parsen, mãe de sua única filha, e essa filha, a minha amada Luana, com títulos como: “O Vinho e a História”; “A Uva e o Milagre: Atlas do Vinho”; “Como Beber Vinho”; “1001 Vinhos Para Beber Antes de Morrer”. Dessa vez, eles tinham ido para a África do Sul com o vizinho do andar de baixo e a esposa dele. Foram na quinta-feira e iam ficar três dias fora de casa para conhecer cinco vinícolas, uma delas no sul de Moçambique e as outras quatro na África do Sul.
A Luana me chamou no whats app logo que eles saíram de casa, me chamando pra ir lá:
— Carlos, o pai e a mãe foram pra África do Sul. Saíram de casa agora. Vem pra cá!
Ao que eu respondi:
— África do Sul?! Eu nem sabia que faziam vinho na África do Sul…
— Pois é, meu pai vem falando feito um louco nas últimas duas semanas sobre a uva de lá, que não-sei-quem falou não-sei-o-quê e ele ficou pirado nisso, queria porque queria ir conhecer.
— Tá, enfim, vou pra aí, então. A Cecília não tá?
— A Cecília não trabalha na sexta, ela vai vir de novo na segunda, só.
— Tranquilo. Posso levar o Cristóvão e a Júlia?
— Pode, sim.
— Tá, daqui a pouco tô aí. Beijo.
— Tá. Beijo.
Depois de uma hora, peguei minha moto e fui até a casa dela, onde já estavam os meus amigos e a Luana tomando, cada um, uma cerveja. Peguei uma outra pra mim e fizemos o que sempre fazíamos: ligamos o som da sala e ficamos na sacada, sentados nas poltronas que tinham lá, dois de nós em uma, os outros dois em outra, bebendo e conversando no escuro sobre o que quer que fosse, dividindo olhares entre o horizonte amplo da cidade de Porto Alegre à noite, onde piscavam luzes por toda parte; o céu, onde piscavam poucas luzes, ofuscadas pelas da cidade; e nós, onde brilhavam, vez que outra, os olhos, que refletiam algo.
Naquela noite nos excedemos, e a única capaz de apontar, na manhã do outro dia, quem tinha a culpa pelo delito era a Júlia.
Eu vi a Luana acordando e indo pra cozinha, meio cambaleante, encostando-se às paredes e resolvi ir atrás. Sentia minha barriga como que sendo moída por jogadores de futebol invisíveis que não cansavam-se de chutá-la, enquanto minha cabeça parecia ter uma agulha enfiada até a metade em cada têmpora. Tudo pulsava. Chegando lá, vi duas garrafas de vinho abertas e vazias, cercadas por incontáveis garrafas de cerveja também vazias em cima da mesa e previ o que tínhamos feito na noite anterior.
— Foi o Cristóvão quem teve a ideia. Tu disse que nem a pau, mas quando eu e o Carlos apoiamos, depois de um pouco de insistência tu falou que tudo bem, que não ia fazer diferença. — dizia a Júlia, olhando, meio cabisbaixa, pra Luana, pras garrafas e pra mim, que acabara de chegar ali e estava parado na soleira da cozinha.
Luana não tinha expressão. Permanecia estática, olhando fixamente para as garrafas. Eu estava parado, boquiaberto, e apenas pensava “meu deus, meu deus, meu deus, meu deus...”, mas sem dizer palavra. Júlia acudia a dona da casa, dizendo repetidamente que tudo ficaria bem. Cristóvão dormia no sofá da sala com a boca aberta, respirando sonoramente.
Quando Luana, cerca de cinco minutos depois do silêncio que se fez - silêncio que seria completo, não fosse a respiração de Cristóvão, que ainda dormia - conseguiu falar algo, foram estas as palavras que eu e Júlia ouvimos:
— A gente vai ter que comprar dois vinhos iguais aos que a gente bebeu. O meu pai fala pra mim desde os meus 15 anos que se um dia ele visse faltar uma garrafa de vinho em casa, ele faria uma investigação e mataria a mim, à minha mãe ou à Cecília, a quem ele descobrisse ter pego o vinho.
Ela disse isso olhando fixamente para um ponto no chão. Eu e Júlia tremíamos. Ninguém disse mais nada.  Luana voltou para o quarto e se trancou lá.
Eu e Júlia resolvemos iniciar as buscas pelos vinhos de seu Van Parsen na internet. Ao encontrarmos os vinhos em lojas locais e comparar preços, encontrando os mais acessíveis, acordamos Cristóvão, que se contorcia de dor ao acordar, tamanha era a sua ressaca. Perguntamos a ele, mostrando as duas garrafas vazias de vinho, se ele se recordava do ocorrido. A resposta dele veio com um arregalar surpreendente de olhos, ao que repliquei, sem expressão alguma na voz:
— Nós vamos ter que comprar outras iguais e rachar entre os quatro.
Cristóvão perguntou o preço e eu apenas coloquei o notebook aberto no site de vinhos diante de seus olhos. Sua resposta foi um olhar inexpressivo a um canto qualquer da sala de estar, o que me fez lembrar de algo que meu pai costumava fazer quando eu chegava do colégio ou da escolinha de futebol com algum machucado: ele olhava para mim com um sorriso no rosto e beliscava alguma outra parte do meu corpo, que não a machucada, e dizia, rindo “uma dor se cura com outra”. Naquela manhã, na cobertura dos Van Persen, eu havia aprendido a curar uma ressaca.

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