sexta-feira, 28 de julho de 2017

Reescrita
Aluno 156
Não é incomum lermos um parágrafo ou uma página inteira de um livro ou, até mesmo, de um trabalho acadêmico para descobrirmos que não registramos nenhuma das informações ali contidas. Os olhos passaram por todas as palavras e o cérebro compreendeu cada uma delas, mas, mesmo assim, nada ficou retido. Rottava (2000) explica que essa leitura se configura de uma mera decodificação: o ato de “decifrar palavras que são colocadas num determinado texto”. Não é incomum, também, que essas situações ocorram no primeiro semestre na universidade, visto que nem todos os alunos trazem consigo a bagagem cultural e a aptidão à leitura que são exigidas para a leitura eficaz dos textos desse meio acadêmico.
A situação mais crítica de leitura como decodificação pela qual passei foi quando precisei ler O Banquete, de Platão, na metade do primeiro semestre do curso de Letras. Logo nas primeiras dez páginas (a versão que li se apresentava em 57), minha mente assumiu um estado de confusão, pois eu não tinha experiências anteriores para comparar com aquelas a mim apresentadas naquela leitura. Não havia lido textos com semelhantes construções, com semelhante complexidade filosófica, tampouco havia sido apresentado ao contexto da obra. Isso se deve à falta do que Kleiman (1995) define como o conhecimento prévio do leitor:
A compreensão de um texto é um processo que se caracteriza pela utilização de conhecimento prévio: o leitor utiliza na leitura o que ele já sabe, o conhecimento adquirido ao longo de sua vida. É mediante a interação de diversos níveis de conhecimento, como o conhecimento linguístico, o textual, o conhecimento de mundo, que o leitor consegue construir o sentido do texto. (KLEIMAN, 1995, p. 13)
Vendo em minha frente esse obstáculo e percebendo que tinha assumido uma leitura mecânica em que nenhum significado era atribuído, decidi, antes de tentar continuar a leitura, procurar por um resumo mais didático que sintetizasse as principais ideias apresentadas na obra e que trouxesse o contexto em que ela se deu. Após algumas leituras na internet, tornou-se mais fácil atribuir significado àquelas construções textuais de Platão, pois eu já trazia engatilhado boa parte do conhecimento prévio de que precisava. Mesmo que ainda apresentasse dificuldades para entender alguns trechos específicos, foi se tornando mais fácil entender a mensagem do texto como um todo. Relaciono essa dificuldade à fuga que as construções fazem ao que Kleiman (1995) chama de esquema:
O conhecimento parcial, estruturado que temos na memória sobre assuntos, situações, eventos típicos de nossa cultura é chamado de esquema. O esquema determina, em grande parte, as nossas expectativas sobre a ordem natural das coisas. (KLEIMAN, 1995, p. 23)
Sem conhecimento parcial prévio torna-se mais difícil remontar na leitura o significado proposto em qualquer texto, e isso é acentuado quando pensamos na data em que o texto de Platão foi escrito e o teor filosófico denso que carrega. Ainda que eu pudesse entender que Sócrates, no texto platônico, afirmava que o objeto do Amor é somente aquilo que não se tem, a compreensão de alguns trechos específicos como o seguinte se mostraram caras, uma vez que não se assemelham ao banco de esquemas que eu já possuía:
Observa bem, continuou Sócrates, se em vez de uma probabilidade não é uma necessidade que seja assim, o que deseja deseja aquilo de que é carente, sem o que não deseja, se não for carente. É espantoso como me parece, Agatão, ser uma necessidade; e a ti? (PLATÃO, 1972, p. 38)
Com isso, visualizei, na prática o que diz Kleiman (1995) sobre a importância do conhecimento prévio, e, a partir disso pude desenvolver mais minha leitura para além da mera decodificação de palavras. Se por um lado o texto platônico se apresentou como um texto difícil, por outro assumiu o papel como um importante meio de desenvolvimento das minhas habilidades de leitura. Além disso, denuncia um problema comum no primeiro semestre do curso de Letras, investigado por Rottava (2012) em seu trabalho A leitura em contexto acadêmico: o processo de construção de sentidos de alunos do primeiro semestre do curso de letras:
Um primeiro aspecto que se observou diz respeito à pouca familiaridade dos leitores com os movimentos organizacionais de textos que circulam em contexto acadêmico. É comum leitura de textos que requerem a compreensão de um conceito desenvolvido com base em um percurso histórico, que obteve distintas acepções, controverso, ou que faz parte de um contexto mais abrangente, provindo de uma prática social mais ampla diferente daquela que o leitor possa ter vivenciado. (ROTTAVA, 2012, p. 174)
Assim, as dificuldades que apresentei ao ler o texto poderiam ter sido facilmente superadas por uma exposição prévia ao contexto e às características da obra. Isso seria suficiente para preencher muitas das lacunas que impedem a atribuição de significado ao que é lido. Ao contrário, quando não se tem parâmetros a partir dos quais comparar a obra, cai-se muito facilmente na leitura mecânica, feita sem nenhum tipo de assimilação para além da compreensão do léxico empregado no texto.

Referências
KLEIMAN, Angela. Texto e leitor: aspectos cognitivos da leitura. 4. ed. Campinas: Pontes, 1995.

ROTTAVA, Lucia. A importância da leitura na construção do conhecimento. Revista Espaços da Escola, Ijuí, Editora UNIJUI, a.9, n.35, jan-mar. 2000, p11-16

ROTTAVA, Lucia. 2012. A leitura em contexto acadêmico: o processo de construção de sentidos de alunos do primeiro semestre do curso de Letras. Signo 37 (63), p. 160-179, jul.-dez., Santa Cruz do Sul.

PLATÃO. O banquete. São Paulo, Ed. Abril Cultural, 1972 (coleção Pensadores). Tradução de Jorge Paleikat e João Cruz Costa.

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