Aluno 120
Reescrita
Eu sempre me considerei uma leitora assídua. Desde pequena, eu gostava de sentar-me à minha cama e passar o dia inteiro lendo. Eu não ficava cansada nunca – às vezes, eu lia dois livros em uma tarde só. E que livros eram esses? Todos eram livros que a escola me obrigara ler. Eu nunca pensara em fazer uma leitura para o meu interesse, afinal, ao meu ver, quem tinha essa responsabilidade de incentivar a leitura era apenas a escola. Por esse motivo, eu aceitava que ela tivesse o “poder” de determinar todos os livros a serem trabalhados.
Essa concepção mudou para mim aos 14 anos, quando eu estava na oitava série. Eu sentia que as leituras que a instituição escolar me proporcionava não estavam mais me satisfazendo do jeito que eu gostaria. Sempre, ao término de algum livro, eu sentia que algo estava faltando – algo instigante, alguma ideia inovadora... Enfim, eu estava cansada daquelas histórias infanto-juvenis que, de alguma forma, sempre se repetiam. A partir disso, fiz questão de procurar por livros diferentes - e foi nesse momento que eu envolvi-me definitivamente com a leitura.
Luiz Britto (2012), em seu ensaio “Leitura: acepções, sentidos e valor”, discorre acerca das diferentes formas de leitura e o que se quer com cada uma delas. O autor explica que a leitura realizada na escola é automática (afinal, o aluno é obrigado a ler), e que não é dessa maneira que se formam leitores. Ele explica:
Enfim, supõe que o gesto de ler seja voluntário, desobrigado, ainda que “comprometido”, no sentido de que representa um investimento pessoal em algo importante. Por isso mesmo, a autonomia e a escolha são aspectos bastante valorizados.
Levando isso em conta, é possível dizer que eu estava dando o meu primeiro passo na minha vida de leitora – eu estava tendo a autonomia de escolher o que leria! Essa iniciativa, no entanto, ocorreu de uma forma um pouco cômica. Pesquisei na internet “livros para ler antes de morrer” e encontrei muitas listas com diversas indicações. Concentrei-me por alguns dias nessas, li a descrição de cada livro com atenção e pensei qual me agradaria mais. Finalmente, cheguei à seguinte conclusão: eu leria 1984, obra de George Orwell.
Esse livro foi uma surpresa para mim. Diferentemente dos livros que eu lia, 1984 não contava uma história superficial: por trás de cada linha, poderia haver um significado oculto, que só um leitor maduro conseguiria decifrar. Além disso, a obra de Orwell estava tremendamente associada à época em que foi escrita; ou seja, havia um motivo social e político para contar a história de Winston, personagem principal do livro supracitado.
Hoje, ao olhar para trás, posso dizer que 1984 foi a obra mais marcante da minha vida, pois foi devido a ela que me tornei uma pessoa letrada e interessei-me por assuntos no âmbito da política, da história e da sociologia.
Antes de prosseguirmos, é interessante que entendamos os conceitos de alfabetização e letramento. Esses serão esclarecidos pelo trecho seguinte (ROTTAVA, 2000):
“Alfabetização significa apenas a ação de ensinar/apreender a ler e a escrever, enquanto letramento diz respeito à condição de quem não apenas sabe ler e escrever, mas cultiva (dedica-se a atividades de leitura e escrita) e exerce (responde às demandas sociais também dessas mesmas habilidades) as práticas sociais que usam a escrita.”
Assim, posso dizer que antes de 1984 eu era apenas uma estudante alfabetizada. Eu lia e escrevia, mas apenas isso. Eu não refletia sobre esses processos, nem buscava entender por que motivo eu os fazia. Após 1984, como dito anteriormente, passei de alfabetizada para letrada. Por ter gostado tanto dessa leitura, busquei realizar outras, e o meu hábito de ler começou a se desenvolver. Dessa forma, aventurei-me por O processo, Laranja Mecânica, Fahrenheit 451 e muitos outros. O melhor de tudo foi, com certeza, o fato de que cada linha dessas obras fora lida com vontade própria e espontaneidade.
Como foi mencionado, a obra de Orwell também influenciou o meu gosto por política e pelas ciências humanas. Foi a partir de George Orwell que eu passei a entender os conceitos de Estado, autoritarismo e alienação. Ademais, foi devido à suposta história fictícia de 1984 que comecei a perceber como a nossa sociedade é, todos os dias, manipulada – seja pela mídia, pelo governo ou pelos grandes empresários. Não tratemos, no entanto, a sociedade como algo externo a nós – eu faço parte dela. Consequentemente, eu percebi que eu também sou manipulada.
Em virtude dessa reflexão, eu criei um propósito na minha mente: ser uma pessoa informada. Comecei, então, a ler jornais, blogs sobre política, livros especializados em ciências sociais, etc. A minha leitura passou a ser, assim, uma leitura como prática social, termo trabalhado por Lucia Rottava (2000). De acordo com a autora, tal termo diz respeito ao uso da linguagem para atingir um determinado objetivo. Rottava complementa: “A leitura está ligada a diferentes propósitos do leitor que, por sua vez, estão ligados ao contexto situacional e às expectativas sociais”.
Eu, por toda a minha infância e pré-adolescência, tive uma mente fechada. Os meus ideais políticos, se existentes, eram idênticos aos dos meus pais. Após Orwell e as pesquisas que realizei, desenvolvi um senso crítico independente – não precisava mais acreditar naquilo que as pessoas me diziam para acreditar. A partir disso, senti-me uma “cidadã”, alguém que deve agir na sociedade em que vive. Engajei-me politicamente e, com 16 anos, votei pela primeira vez. Além disso, participei de trabalhos voluntários, acreditando que, dessa forma, eu poderia fazer a minha parte no mundo. Isso que ocorreu comigo pode ser melhor explicado por Luiz Britto (2012). De acordo com ele, a leitura é um hábito humanizador, pois é ela que faz-nos reconhecer como sujeitos e atuar conscientemente em nossa comunidade.
A leitura, especialmente a de 1984, foi essencial na minha vida. Ela fez-me ser quem sou e descobrir-me como cidadã em minha sociedade. Sem ela eu provavelmente estaria impassível a todas as ordens que me eram dadas, como que livro ler ou em que político acreditar. Em suma, 1984 trouxe-me o amadurecimento e a consciência, qualidades necessárias para o desenvolvimento de atitudes e de ações. Afinal, como disse Orwell em sua obra: “Enquanto eles não se conscientizarem, não serão rebeldes autênticos e, enquanto não se rebelarem, não têm como se conscientizar”.
Referências bibliográficas
BRITTO, L. Leitura: acepções, sentidos e valor. Nuances: estudos sobre Educação, São Paulo, v. 21, n. 22, jan/abr. 2012. Disponível em <http://revista.fct.unesp.br/index.php/Nuances/article/view/1619/1555>. Data de aceso: 08/07/2017.
ROTTAVA, L. A importância da leitura na construção do conhecimento. Espaços da escola. Ijuí: Unijuí, 200. p. 11-16.
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