Aluno 144
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Com as mãos levemente trêmulas, ele pousava o copo na mesa com um baque surdo, ao mesmo tempo derrubando um pouco da cerveja no balcão. O vozerio a sua volta já começava a ser ensurdecedor e ele, entorpecido, não era capaz de distinguir se o que via à sua frente era um homem ou um mictório. Foi na tentativa de urinar no companheiro, que talvez estivesse na mesma situação, que ele levou o primeiro soco. E a partir desse primeiro ele já não foi capaz de pensar nos próximos, perdeu os sentidos e foi novamente arrastado para casa, sem o celular e sem nenhum tostão no bolso.
Essas são as minhas memórias de infância sobre o meu pai, o bêbado ousado que apanhava, que era roubado, e que depois era arrastado para casa por um desconhecido qualquer, para repetir tudo no dia seguinte. As suas mãos, calejadas e grossas de segurar a pá e preparar o cimento também serviam para acariciar meus cabelos infantis encaracolados e em desalinho, tentando de alguma maneira fazê-los parecer penteados. Serviam também para os beliscões em mim ou em qualquer das quatro mulheres que moravam na mesma casa que ele: minha irmã caçula, minhas duas irmãs mais velhas ou minha mãe.
Num momento de rápida coragem, minha mãe o expulsou de casa, jogando suas roupas por cima da cerca de madeira podre, fazendo-as cair no chão de terra batida da nossa casa, no interior. Assim, perdi o privilégio de sua companhia, e minha mente infantil e inocente não era capaz de compreender. Após a expulsão dele, simplesmente acordei e estava proibida de ser sua filha. Ele simplesmente não morava mais ali, não houve despedida, não houve explicação. O que houve foi um “bença, pai” na noite anterior e só, mas na situação em que se encontrava, certamente não ouviu. Minha mãe finalmente se impôs. Qualquer menção ao nome dele era motivo para minhas lágrimas, e para um ódio tão encrustado em minha mãe que, com o passar do tempo, aprendi a ignorar que um dia ele tivesse existido, ainda que frequentemente em meus pensamentos ele se recusasse a ser esquecido.
Os dias chuvosos certamente se prestam a nos trazer lembranças. Um entardecer chuvoso de outubro trouxe-me a lembrança de um homem de sobrancelhas grossas, com fios compridos e esbranquiçados, de olhos redondos e marrom-esverdeados como burquinhas, penetrantes, frios e profundos. Eu tinha 11 anos, queria dominar o mundo, eu já não era mais a garotinha de cinco anos, meu cabelos já não eram encaracolados e nem em desalinho, enquanto papai ainda era o bêbado que apanhava, que era assaltado e que me fazia cafuné, ainda era o homem que não existia existindo em meus pensamentos. Se de um lado os dias chuvosos trazem as lembranças, os dias ensolarados trazem os acontecimentos. Mais uma tarde foi trazida, cheia de sol para a história da minha vida. Apesar de tanto tempo ter transcorrido, eu era capaz de reconhecer o homem que chegava com aquele carro e estacionava na frente de casa, do outro lado da rua. Minha mãe, então, quase saltou os olhos tamanha a ira e, trincando os dentes, esperou.
O homem desceu do carro, lançou um olhar maroto para a ex-mulher e, à filha, apenas duas palavras, num pedido sincero e caloroso, sorridente:
- Venha aqui!
E os meus pés foram, ao mesmo tempo em que os ouvidos captavam, no lado oposto, outras duas palavras ditas com um pouco menos de calor:
- Filha. Volta.
Certamente, se Salomão estivesse ali, não haveria problema para ele: bastava dar uma parte de mim para cada um dos interessados e o problema estaria resolvido. Quem sabe talvez ser partida ao meio fosse um pouco menos doloroso do que aquilo? Não pararam na primeira frase: ambos repetiram as palavras, primeiro o pai, depois a mãe. Como uma criança pode fazer uma escolha se, amando a mãe e amando ao pai, não quer ofender a nenhum?
O jeito era não fazer escolha, e sim sentar-se no meio do asfalto aos 11 anos de idade e esperar que a história se desenrolasse, não com calmaria, mas sim com lágrimas e um grande rasgo: nas roupas e na alma. Após o silêncio consternado de ambos, o irmão de minha mãe, enfezado, me pegou no colo e me levou para o quarto. Lá fora, muitos gritos. Entre as lágrimas adormeci.
Hoje conto esta história não com 5, nem com 11 anos, mas com 23. Nessa manhã de sábado, tanto tempo depois, acordei pensando nisso e, com um beijo na testa frágil de minha mãe, decidi que iria comprar uns pães para o café. Eu caminhava pela rua em direção ao mercado quando o avistei, pedalando numa velha bicicleta verde e desbotada, suja de cimento, com um aro torto e rangendo. Ele se aproximou com os mesmos olhos escuros e redondos, e um sorriso maroto escuro e desdentado. Também com um sorriso o recepcionei, abracei, e nos sentamos na lanchonete próxima. O garçom se aproximou, com prancheta em mãos.
- Bauru para nós dois, por favor. – pedi ao garçom, que anotou e esperou para anotar nossa bebida.
- Tem algo bom que eu aprendi, pai, em toda essa nossa história. – Foi o que eu disse, e ele sabia do que eu estava falando.
- O quê? – foi a resposta, dita mais com os olhos de burca do que com os lábios.
- O que vão beber, senhorita?
- Suco, faz mais bem – foi a minha única resposta, para ambos.- Suco não estraga famílias.
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