Aluno 142
Reescrita
Era uma segunda-feira comum. Cheguei em casa da faculdade, abri a porta e dei de cara com a minha prima, Ana, sentada numa cadeira de praia que usamos como sofá na nossa “sala”. Sem esperanças, larguei a mochila, me joguei no chão e relatei meu insucesso acadêmico, precisava escrever uma história, já tinha escrito cinco e não havia gostado de nenhuma. Ela, com o chimarrão na mão, me escutou com certa paciência, mas como toda péssima ouvinte já sabia o que dizer antes que eu terminasse a primeira frase. Ficou esperando o momento certo para interromper meu sofrimento infundado e disse: - Mas por que que tu não me procurou antes? Guria, minha vida dava uma coletânea de uns dez volumes. Senta aí e começa a escrever. Eu só obedeci. Quando pequena cresci a vendo amadurecer, queria ser a Ana: divertida, inteligente, linda, com vários amigos e namorados. Como todos, coleciona várias conquistas e alguns fracassos. Grande parte dos fracassos são do sexo masculino com nome, sobrenome, em média um metro e oitenta de altura e um sorriso encantador. Foi numa dessas belas enrascadas que Ana passou cerca de quatro anos de sua vida. Eu escutei tudo, espantada, em silêncio, e a história tomou meus pensamentos pelo resto da semana. Tudo começou quando ela tinha dezenove anos e foi apresentada por alguns amigos ao Pedro, bonito, bem-sucedido, encantador e sabia conversar como ninguém. Não levou muito tempo para que os dois se apaixonassem e iniciassem um relacionamento. Ela conta que nessa época havia sido alertada por ex-namoradas sobre a moral duvidosa do rapaz, mas não acreditou. O conheceu muito bem durante aqueles primeiros dois meses, só poderia ser inveja. Com o passar do tempo, Pedro revelou-se um completo controlador, porém sútil. Tudo começou quando em um dos eventos promovidos por sua casa de shows, ele contou quantas vezes Ana foi ao banheiro. Tiveram uma discussão horrível no meio da festa, na frente de todos os presentes. Depois disso, as brigas só pioravam e eram motivadas pelas razões mais estúpidas, conta Ana: - Se eu demorava para atender o telefone era porque eu tava com alguém. Se eu atendia muito rápido, eu tava nervosa por algum motivo. A gente tinha brigas intermináveis por qualquer razão. No final, eu sempre pedia perdão e me sentia culpada por ter provocado tudo aquilo. Além disso, o Pedro conseguiu me afastar de todo mundo, era impressionante, alguém sempre tava falando mal de mim, sempre me olhava torto ou tinha inveja, ele inventava histórias e eu, cega, acreditava. Briguei com meus amigos e familiares e fiquei sozinha, eu só tinha ele. Durante quatro anos tudo que Ana fazia era brigar, chorar, se sentir culpada, trabalhar, e ser exibida como troféu aos amigos de Pedro, sempre linda e impecável por fora, só que por dentro, destruída. Ela conta que se sentia ligada de maneira doentia, como individuo não existia mais, só era alguém quando estava com ele. Pedro chegou a exigir que Ana largasse o emprego no hospital como técnica de laboratório, afirmando que o motivo das brigas eram os longos plantões que os impediam de passar mais tempo juntos. Depois de muita insistência, cedeu e largou o emprego. Estava definitivamente sozinha, as poucas relações que estabelecia eram com as colegas de trabalho e agora nem isso restara. A família tentou intervir, os amigos mesmo brigados interviram, mas ela escolheu ignorar a todos, de novo. Ana disse que o fim do relacionamento foi quando ela descobriu que Pedro a traia desde o segundo mês de namoro, e que não foi só com uma pessoa. Quatro anos juntos não se apagam assim, do nada. Depois da descoberta, ficou balançada e demorou um tempo para confrontá-lo. Após o término, ele continuou a perseguindo. Como se reaproximou da família e dos amigos, teve força para resistir as investidas do ex-namorado. Foram anos de acompanhamento psicológico para que os traumas se apagassem. Hoje, Ana diz que tem a lembra desse tempo sem sentir tanta dor. É difícil de acreditar, mas mesmo quatro anos depois do término, Pedro a procura ás vezes para conversarem, é claro que ela o ignora e até acha graça. Nesse meio tempo ele já manteve vários outros relacionamentos igualmente abusivos, e todas as meninas passaram pelas mesmas situações. Perguntei se ela nunca alertara a essas mulheres sobre o que havia passado com ele. Respondeu que sim, mas que receberam o aviso, como se fosse ciúmes. Exatamente com ela fez há quatro anos. Ana nunca levou um tapa. Porém as feridas que o “amor” a fez são invisíveis e ainda mais profundas. Aquela tarde não foi mais a mesma no nosso pequeno apartamento. A Ana que eu admirei durante minha infância estava, na verdade, calada. Tudo isso debaixo dos meus olhos. Quantas mulheres já passaram por mim, sem nenhuma marca de agressão e extremamente machucadas? Quantas?
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