domingo, 9 de julho de 2017

A Vida é Bela

1 Versão
Aluno 164


Numa noite fria do inverno porto-alegrense estava eu a escrever uns versos e a beber tranquilamente uma cerveja no Centro quando surge um negãozinho esguio de boné, moletom e bermudas vendendo livros para aqueles que estavam nas mesas externas do bar do Laucir. Ali, com frequência, aparecia gente vendendo seus produtos: artesanato, artefatos para fumar, bótons, ímãs, dreads naturais e camisetas do Bob Marley. O negãozinho vendendo livros destoava da vibe do local. Em geral quem vendia livros eram velhos religiosos ou anarcos com suas fanzines.
Quando vi que tais livros eram de sua autoria, fiquei curiosíssimo. Eram fotocopiados e grampeados artesanalmente; tinha até uma cordinha de marcar página. E não era apenas uma, mas três obras diferentes: uma coletânea de poemas de versos heterométricos sobre ódio e amor, um livro de contos sobre o cotidiano dos funcionários da Cootravipa – a empresa que presta o serviço de recolhimento de lixo na cidade – e por fim um romance de quase trezentas páginas sobre o relacionamento de um homem e uma travesti na 3ª galeria do pavilhão H do Presídio Central de Porto Alegre.
Fiquei interessado e convidei Marcelo Pereira Brum, vulgo Caniço, para que sentasse. Eu lhe pagaria uma bebida, o que foi prontamente recusado. “Além do quê eu não bebo cerveja”, respondeu o escritor, e pediu uma esfirra de frango para comer. Perguntei da sua rotina vendendo seus livros e, seco, me disse que “ninguém dá moral prum negão magrelo vendendo livros de autoria própria, talvez nem se fossem livros furtados vendidos a preços módicos”.
– Conte-me uma história –, pedi. – Eu também me dedico a escrever.
– Legal. As minhas histórias estão escritas e têm um preço: apenas oito reais o livro de poesias, 15 o de contos e 50 reais o romance.
– Mar de Esperma? Mas que título mais fodido esse. Bem coisa de cadeieiro.
– É um romance muito triste. Escrevi na cadeia mesmo. O título não é de meu agrado, mas promessa é promessa.
– Que promessa?
– Prometi a um bom companheiro.
– O quê?
– Que Mar de Esperma seria um romance de sucesso.
– Mas perguntei o porquê do título...
– Sim. O título foi autoria dele. António Pérez Bambarén, um ex-colega de cela. Um espanhol condenado por tráfico internacional de drogas. Desceu em São Paulo com dois quilos de cocaína vindo do Peru escondidos num par de muletas. Foi descoberto, mas fugiu milagrosamente. Acabou parando em Floripa e depois veio pra Porto, onde tomou uma ruim, foi denunciado pelos próprios superiores que faziam o intermédio dele com o seu destino na Europa. Foi traído, decerto pra salvar a pele de algum tubarão do tráfico.
– E como se conheceram?
– Numa boate gay perto do Praia de Belas.
– É mesmo?
– Claro que não, imbecil, nos conhecemos puxando pena, catando centavos pra comprar cigarro na vendinha dos Bala na Cara, 12 pila um maço. Eu fiquei nessa galeria pois conhecia os nêgo da Bonja. E ele, um velho de sessenta anos, sem nada, nem ninguém, e ainda por cima viciado e sem falar português... levou droga no rabo até morrer de tuberculose acocado na privada cagada da cela.
– Que fita, hein mano... mas e o Mar de Esperma, o que tem a ver?
– Era o título do romance dele. Ele também escrevia. Morreu sem terminá-lo.
– E onde foram parar os escritos dele?
– Viraram cinzas, provavelmente. Quando alguém sai da cadeia, seja morto ou por ganhar progressão de regime, os homi quebram, rasgam, ateiam fogo no que tu não puder levar. As roupas e coisas tipo lençóis ou cobertores ficam pros demais apenados, mas objetos pessoais são retirados e jogados fora ou sabe-se lá o que acontece. No caso eu tentei salvar o livro, mas a morte foi repentina e numa noite que eu tava doidão no crack.
Fui folheando os livros e ao mesmo tempo conversando com Marcelo. Eu estava impressionado, realmente. Discretamente amassei os guardanapos onde escrevia minhas porcarias e joguei no cinzeiro. Eu, que não sou de fumar, acabei comprando um avulso. Marcelo também tirou um cigarro e fumamos. De onde havia surgido esse rapaz? Em que vila se criou? Onde concluiu seus estudos? Será que concluiu seus estudos? Abri a página 26 do seu livro de poesias, aleatoriamente:
irmãos,
já se passaram muitos anos!
as amizades fúteis
e os amores não correspondidos
tremenda bobagem!
trago em mim a coragem
e a fé
de um bruto que ama.
quero todos que amei
os quero bem?
bem quero vê-los queimar
no colchão no meio do pátio
interno.
e o inferno no qual me encontro
sem meu amor,
minha mulher, aquela guerreira insuperável
também enjaulada mesmo sem precedente
não é comparável às vezes que me violentaram
por aqui, psico e sexualmente.
Eu sinceramente resolvi olhar bem nos olhos de esclera amarelada de Marcelo. Não é possível que possa haver poesia diante de realidades tão desanimadoras. Ou será que é daí que surgem novas possibilidades? Ou então será tudo uma invenção? Esses presidiários são bem criativos, já ouvi dizer. Não sei. Comprei o romance. Apenas o segundo exemplar desse título que Marcelo conseguira vender em meses, segundo me disse.
Uma ou talvez duas horas se passaram e continuei ali. Fitei o livro apenas, não tive coragem de abri-lo. Não tive nem vontade. Não queria nem ter gastado aquela grana. Pendurei a conta e fui em direção ao Mercado Público. Já era madrugada. Quando passava pela Praça da Alfândega presenciei uma covarde batida policial. Mais adiante, já nas lancherias vagabundas da Praça XV, duas meninas bebiam suco de pozinho e riam e se beijavam loucamente. Um morador de rua tocava Raul Seixas num violão rachado. Nessa noite aprendi com o vulgo Caniço, da pior maneira possível, como, inevitavelmente, é bela a nossa vida.

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