Reescrita
Por Aluno 28
Há
muito tempo atrás, tão logo as galinhas deixaram de ter dentes, eu nasci. Entre
minhas primeiras memórias está a de arrumar o quarto do meu irmão, deixando
organizados os volumes em tom pastel de uma coleção dos contos dos irmãos
Grimm, assim como os volumes vermelhos da enciclopédia Delta Júnior.
Colocava-os todos de pé, com as lombadas viradas para frente, apoiados em porta
livros improvisados com brinquedos, e deixando, no centro, um único volume
invertido, meio aberto e com as páginas voltadas para frente, ávidas pela
espiadela de um potencial leitor. Achava lindo... quisera um dia ter no meu
quarto uma coleção de livros de capa dura como aquela.
Meu
letramento iniciou no jardim; e sobre isso, Rottava escreve:
Letramento
diz respeito a condição de quem não apenas sabe ler e escrever, mas cultiva
(dedica-se a atividades de leitura e escrita) e exerce (responde às demandas
sociais dessas mesmas habilidades). (ROTTAVA, 2000)
As
primeiras lembranças de escola são de ler livrinhos de história para meus
colegas no jardim de infância. Conta-se que aprendi a ler muito cedo e, no
inverno em que completei 6 anos, após as férias de julho, fui transferida para
a primeira série. Eu era importante contando as historias, e ainda posso ver as
outras crianças sentadas ao meu redor, quietas, enquanto eu lia. Acredito que
gostava mais de ter a atenção de todos voltada para mim, do que propriamente do
fato de ser capaz de decodificar tais livrinhos. Usava, já em tão tenra idade,
a leitura como prática social, como menciona Wallace, (1993) em Rottava, (2000).
Mais
ou menos a partir desta época, lembro que nossa família frequentava nos finais
de semana, a AABB (Associação Atlética do Banco do Brasil), onde eu e meus
irmãos nos divertíamos na “floresta”- uma grande área verde que lá havia. Mas
não sem antes passar na biblioteca do clube e pegar o Manual do Escoteiro
Mirim, e/ou o Manual do Professor Pardal, para que, de posse destes elementos
indispensáveis para a sobrevivência na selva, passássemos horas de extremo
divertimento e pesquisa, buscando plantas exóticas, tentando montar barracas
com a vegetação, testando diferentes tipos de nós, etc. Agora, enquanto escrevo
sobre estas memórias, percebo o quanto essa biblioteca alimentou a Márcia
prática e adaptável de hoje, treinada a partir das diversas possibilidades que
a selva oferecia; também a Márcia curiosa das ciências exatas e biológicas; Com
os livros da coleção do Asterix, que costumava levar para casa durante a
semana, alimentaram meu gosto pela história antiga; por último, com a coleção
Anita, fortaleci meu lado menina, meiga, maternal. Todas eram leituras
absolutamente prazerosas. Eu não tinha a menor consciência do quanto delas eu
trago ainda dentro de mim, tantos anos mais tarde!
Fiz
o primário, e o segundo grau no período da ditadura militar. Todo o enfoque de
leitura, escrita, interpretação de texto eram pensados de forma a não exigir
reflexão mais profunda. O que se deveria saber, já se encontrava nos textos,
bastava procurar atentamente a resposta presente ali; tínhamos vários livros do
tipo “estudo dirigido”, aonde as respostas certas vinham impressas no próprio
livro, sem margens para respostas diferentes das previamente decididas pelo
autor; ninguém era muito estimulado a pensar.
Defasadas
do âmbito mundial em praticamente uma década, as teorias de leitura vigentes
àquela época no Brasil, ainda eram entendidas, como afirma Rottava, como “atividade
descendente (bottom up), ou seja, ler
é extrair sentidos pelo leitor como decodificação dos elementos linguísticos
contidos no texto [...]” (1998)
Tive
uma professora na 7ª série, que solicitava que eu desenvolvesse mais minhas
respostas. Foi a única, pelo que me lembro, a querer mais do que simplesmente a
resposta correta. O problema é que eu não gostava dela; ela comparava minha
forma de expressão, minhas respostas corretas, porém secas, com as que minha
irmã costumava dar, bem mais prolixas e desenvolvidas. Porém o fato de eu não
gostar dela, fazia com que eu não quisesse agradá-la e, àquele tempo, este era
o objetivo, que eu supunha ser, das tarefas escolares.
Em
Rottava/12, a autora comenta:
A
compreensão do texto sugere uma relação entre o propósito e o contexto no que
diz respeito à leitura, visto que um dos constituintes do texto é o fato de ser
produzido a partir de um querer dizer, um propósito; (ROTTAVA, 2012)
E esta
ideia, este propósito, definitivamente não era claro para mim.
Alguns
dos livros que nos obrigavam a ler no colégio, eu gostei muito. O Caso da Borboleta Atíria, O Escaravelho do
Diabo e A Vaca Voadora , por exemplo.
Porém, detestei, e não consegui terminar de ler livros como: A Moreninha, O
Cortiço e Senhora. Os trabalhos realizados com estes últimos eram as próprias
fichas de leitura que vinham junto deles, eram atividades do tipo relacionar os
personagens com determinadas características psicológicas, escrever resumos do
enredo... Não havia qualquer preparação em sala de aula, que tornasse mais
interessante a leitura destes clássicos; tampouco uma posterior análise que
fizesse com que a má impressão que tivera na primeira tentativa de leitura,
pudesse ser reconhecida como precipitada ou preconceituosa.
Rottava/2000
cita critérios que deveriam ser levados em conta para a seleção de material de
leitura, tanto nas escolas como em família, para que a construção de sentidos
se concretizasse. É pena que tal artigo tenha sido publicado tantos anos depois
de minha vida escolar; meus professores não tiveram chance de usufruí-lo, nem
eu de escapar de tão traumática experiência. Mas, más experiências também servem
para que se as reconheça e se as evite no futuro.
Acho
que a primeira vez que percebi um livro fechado como algo que trazia congelado dentro
de si tão incríveis histórias, foi quando li Meu Pé de Laranja Lima. Chorei
tanto, tanto, e em tantos momentos enquanto lia este livro... Foi com ele que aconteceu
de olhar o livro fechado e pensar: está tudo ali dentro, tão desesperadamente
poderoso quando se lê, e tão inofensivo quando está na prateleira... Não devia
ter mais de 12 anos quando isso se deu.
Ainda
pré-adolescente, descobri em nossa casa na praia, um baú, cheio de livros
antigos que minha mãe e suas irmãs traziam de seu “tempo de solteiras”. Durante
uns dois ou três verões, passei muitas tardes deitada em meu beliche lendo
romances que se passavam na África, alguns romances policiais e foi quando a
primeira vez li O Tempo e o Vento, todos eles, vindos do baú. Na época não via
poesia nenhuma nisso, não havia qualquer encanto na imagem de um baú de livros
antigos que crianças liam durante os verões. Hoje, tantas leituras depois esta
imagem é quase um clichê, mas de fato aconteceu, mas sem qualquer “música de
fundo”.
Enquanto
cursava o ensino médio, não tenho lembranças de qualquer contato com livros,
foi um tempo sofrível para os estudos. Durante o cursinho pré-vestibular, gostava das aulas de literatura, porém elas
não faziam com que eu movesse um músculo sequer em direção a qualquer livro que
fosse. A relação que imaginava ter àquele tempo com literatura, era somente a
má impressão que a quase leitura dos clássicos do romantismo e do naturalismo
deixaram em mim; eu entendia, então, que EU NÃO GOSTAVA DE LER! Porém, em
contrapartida, queria aplicar um raio diminuidor no meu professor de literatura,
e levá-lo sempre comigo, onde quer que eu fosse, como um pequeno radinho de
pilhas, junto de meu ouvido, contando aquelas histórias, era fantástico!
Durante
a faculdade de Medicina, tínhamos de ler muito. Nesta época me arrependi de não ter levado a
sério e até o final, os estudos de inglês. Minha compreensão deste idioma era
péssima, e muito do material de estudo que nos era disponível era somente neste
idioma. Esta deficiência só foi remediada 20 anos mais tarde, quando,
finalmente decidi estudar inglês de forma definitiva; esta experiência foi de
crucial importância na minha vida literária, e falarei mais sobre ela adiante.
Após formada, creio que o primeiro
livro que li foi O Físico- a epopéia de um médico medieval, e os outros dois
livros que com ele formam uma trilogia. Lentamente fui retomando o gosto pela
leitura. Nesta época, não tinha qualquer apego aos livros, nada que lembrava o
cuidado que tinha quando arrumava a prateleira com a enciclopédia no quarto do
meu irmão. Não os guardava depois de lê-los, não me importava em emprestá-los a
quem sabidamente não mos devolveria.
Foi só depois da maternidade comecei
a me apegar novamente aos volumes enquanto objetos, algo que merecesse estar de
alguma forma exposto para ser admirado. E a partir dos volumes dos meus filhos,
resolvi montar uma biblioteca.
Há
pouco mais de 10 anos resolvi que iria finalmente aprender Inglês, queria, especialmente,
poder LER em inglês. Além da conquista do idioma, tive por quase um ano aulas
com uma professora que mudou minha perspectiva sobre leitura. Ela dava-me
textos, dos mais diversos assuntos e interrogava-me SEMPRE, sobre o que eu
pensava sobre eles. E eu não PENSAVA NADA, eu compreendia o que eles diziam,
mas era difícil, para mim, saber o que eu “pensava sobre”. Devagar fui
percebendo o quê poderia pensar, e que de fato eu pensava algo sobre aquelas
coisas que lia; não necessariamente eram pensamentos surpreendentes, muito
qualificados, ou originais, mas passei a transformar em palavras, pensamentos
antes escondidos inclusive de mim. Esta
professora usava a leitura numa perspectiva interativa, onde, conforme Grabe em
Rottava, a construção dos sentidos apareceria como um resultado da interação
entre leitor e os elementos linguísticos, textuais e discursivos do texto, além
das suas inferências estratégicas e das experiências e leituras prévias (1998). E isso foi muito bom e produtivo,
os textos nem sempre eram exatamente o foco do que discutíamos, mas serviam
como base, como ponto de partida, de onde muitos outros significados eram construídos.
A partir daí, senti que minhas
leituras de literatura propriamente ditas, se elevaram de patamar, a partir
deste período; minhas concepções de leitura se tornaram mais ricas e gratificantes.
Comecei a sentir necessidade de dividir as leituras que fazia, compartilhar
minhas impressões, dúvidas, êxtases e indignações. E sete anos atrás, comecei a
pesquisar, em vários livros (todos em inglês), sobre como organizar grupos de
leitura, (atividade muito popular nos EUA), e embasada nestas leituras, formei
dois Grupos de Leitura. É uma experiência bárbara, que merece um memorial
específico. Lucia Rottava traz à baila
que “no dia-a-dia, ler não é apenas uma
prática individual, mas uma prática que se revela variável de acordo com a
comunidade na qual se está inserido.” (ROTTAVA, 2012)
Minha
relação com a leitura vem evoluindo, meus interesses cada vez mais se expandem,
minha memória, infelizmente, míngua cada vez mais.
Parece-me
que, com a memória que ainda me resta, consegui atingir, ao menos em parte, ao
objetivo maior deste relato;
A
grande riqueza do memorial é compreendida quando o rememorar dos eventos
constrói pontes com o presente, criando insights que vão dar lugar a
verdadeiras aprendizagens. “É uma forma de reinterpretação da vida,
acrescentando-lhe novo colorido, tristezas e sucessos.” (BARBOSA; PASSEGUI, 2006, em Gaspar et col.)
Sinto
que preciso de mais tempo e trabalho para preparar este memorial de forma que
satisfaça minhas novas expectativas, por ele mesmo criadas. Mas tampouco posso dizer
que ele seja, neste momento, apenas um “esqueleto” de memorial. Vejo-o agora
como: pele e osso. Faltam-lhe músculos e muitas gordurinhas. Trata-se de um
memorial que abrange meio século de experiências. É difícil suprimir deste
documento, mais lembranças que, tão vivamente, agora se mostraram a mim! Como
salientam Barbosa e Passegui/06 in Gaspar et col, na fase inicial da concepção de um memorial:
As
lembranças emergem coloridas pela emoção. Elas tendem a provocar um conflito
existencial na evocação dos momentos, pessoas, espaços, ações charneiras. Fica
a sensação de um pensamento nebuloso diante dos fatos completamente
desordenados e inseparáveis da vida pessoal e profissional do narrador.
(BARBOSA; PASSEGUI, 2006, em Gaspar et col.)
Mais
adiante fala de uma segunda fase no trabalho de construção do memorial, onde
ocorre uma maior conscientização do seu processo de mudanças, e partilharia com
um grupo reflexivo as sucessivas versões da história, fazendo com que o autor
ultrapasse temores iniciais e vença resistências; e ainda, a conclusão final,
que buscará a Refiguração, a interpretação do texto produzido.
Acredito
que é nesta sequência do trabalho que encontrarei as proteínas e os carboidratos
necessários para que meu texto realmente tome corpo.
Bibliografia básica:
ARCOVERDE, Maria Divanira
de Lima, ARCOVERDE, Rosana Delmar de Lima. Leitura,
interpretação e produção textual – Campina Grande; Natal: UEPB/UFRN, 2007
BRITTO, Luis P. Leme: Leitura: Acepções, sentidos e valor.
In: Nuances: estudos sobre educação; ano XVIII, vol 21, n22, p. 18-32,
jan./abr. 2012
Bibliografia referida:
GASPAR, Mônica Maria
Gadelha de Souza; ARAÚJO, Maria de Fátima; PASSEGGI, Maria da Conceição- Memorial – gênero textual (auto)
biográfico. In www.cchla.ufrn.br
ROTTAWA, Lúcia. A leitura e a escrita na pesquisa e no
ensino. In Espaços da Escola, ano 4, n 27, p. 61-68, jan./mar. 1998, Ed
Unijuí
________________ A importância da leitura na construção do
conhecimento. In Espaços da Escola,
ano 9, n 35, p. 11-16, jan./mar.2000, Ed Unijuí
________________ A leitura em contexto acadêmico: o processo
de construção de sentidos de alunos do primeiro semestre do curso de letras. In Signo, v. 37, n 63, p. 160-179, jul.-dez.,2012,
Santa Cruz do Sul
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