Aluno 140
Reescrita
É possível afirmar que sempre gostei de ler, antes mesmo de ser alfabetizada. Lia as imagens, as cores, as capas com as ferramentas que tinha; lia o som das vozes dos mais velhos que se viam intimados a decodificar as letras para mim. Minha brincadeira preferida era de escola, porque me disseram que lá era onde a gente aprendia, entre outras coisas, a ler. Mal sabia eu, no entanto, que nem sempre aprendemos a ler na escola. Certamente existem esforços para que sejamos alfabetizados – a cartilha me dizia que “bê e a é bá” e que “O bebê é bonito”. Também me disse que “Xisto coloca o xale na caixa”, embora eu nunca tenha conhecido alguém chamado Xisto ou visto alguém usar a palavra 'xale'.
De fato, “a alfabetização não sinifica saber ler” (ROTTAVA, 2000), e embora a maior parte de nós tenha superado a cartilha e se tornado proficiente em “juntar as letrinhas”, não sei se é possível afirmar que foi a escola que nos ensinou a ler. Assim como Xisto e o xale, nos anos que se seguiram nossas leituras continuaram sendo desconectadas da nossa realidade e que nos pareciam sem propósito maior além de passar de ano.
Em Abordagens da Leitura, Angela Kleiman (2004) aponta o perfil do leitor pressuposto em um livro didático do fim da década de 70 (página 19) que me pareceu muito próximo àqueles que usei na escola (mesmo tendo eu nascido no fim da década de 80). A autora descreve:
[…] os desenhos tipo gibi, o tamanho, forma e cor das letras do título (letras trêmulas de cor rosa no original) não parecem significar pelo seu valor simbólico (por exemplo, rosa e feminidade, letras trêmulas e terror): sua função estaria limitada a prender a atenção de um leitor a quem não se credita mais a possibilidade de engajamento contínuo, independente, na leitura do texto verbal. […] o grande número de ilustrações, cores, tamanho e forma
de letras aponta para um perfil de leitor pressuposto que teria dificuldades para se manter engajado na leitura de um trecho verbal sem esses recursos gráficos. Em combinação com outros elementos da unidade, como o tipo de perguntas feitas a esse leitor (predominância de perguntas de localização de informação e raridade de perguntas inferenciais), a composição aponta para um leitor bem diferente daquele leitor intelectualmente engajado que emerge da pesquisa: o do LD teria problemas para se engajar cognitivamente, para fazer inferências, para levantar hipóteses. (KLEIMAN, 2004. p19-20)
Levando em consideração a afirmação da autora sobre as pressuposições feitas pelo livro didático sobre o aluno leitor, além de minhas experiências e observações na escola com meus colegas – que a maior parte de nós mostrava grande dificuldade com a leitura e, consequentemente, com a escrita de textos – não poderia deixar de me perguntar se o que veio primeiro foi o aluno que não consegue se manter engajado na leitura e que tem dificuldade de fazer inferências, ou se a pressuposição dos autores do livro didático teria se tornado uma espécie de profecia auto-cumprida que viria a gerar leitores com o perfil identificado por Kleiman. É uma questão que parece ser do tipo “o ovo ou a galinha”; a partir das informações de que disponho agora, não me parece possível chegar a uma conclusão acerca de quem veio primeiro – o leitor ou o pressuposto de leitor.
Inconclusões podem parecer insatisfatórias à primeira vista, mas acredito que esta em particular serve a um propósito. Elaborar pressupostos sobre os alunos é parte do trabalho do professor – é assim que podemos construir um bom plano de aula e prever os obstáculos que podem ser encontrados no caminho do aprendizado; não devemos, no entanto, impor nossas pressuposições sobre eles de maneira a limitá-los àquilo que construímos. Resta a mim manter esta ideia em mente para não subestimar o leitor que vier a minha sala de aula, mantendo-me no presente do aluno para que o texto tenha sentido para ele como ser social.
BIBLIOGRAFIA
KLEIMAN, ANGELA B. Abordagens da Leitura. SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 7, n. 14, p. 13-22, 1º sem. 2004
ROTTAVA, LUCIA. A importância da leitura na construção do conhecimento. ESPAÇOS DA ESCOLA, Ijuí, ano 9, n. 35, p 11-16, Março 2000
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