1 Versão
Aluno 50
Rever memórias nos toca de um modo ou de outro. Estamos tão acostumados com o mesmo vento, o mesmo sol, o mesmo pulsar no peito, que só quando nos relemos por dentro notamos quantas páginas se passaram. A vida, afinal, não passa de um breve folhear de um livro que tem como destino alguma prateleira empoeirada; e por mais besta que seja a história ainda assim nos sentimos tão apegados a ela.
Nas minhas primeiras páginas, já amareladas, existe uma casa onde se preservava um único livro, cujos salmos já mal eram lidos. Literatura era uma palavra exótica. Meu pai, devido às carências de infância, era um sujeito de pouco estudo, minimamente dado à leitura e, nas raras vezes que o fazia, tinha de mexer os lábios e cochichar vagarosamente para absorver que no princípio Deus criara o céu e a terra. Entretanto, seu baixo nível de alfabetização não o impediu de me ensinar o pouco que sabia antes mesmo de me mandar à escola. Bondosamente me instruiu – que seja seu o céu que no princípio Deus criou –, e pacientemente aprendi. Fui à pré-escola já alfabetizado, mas o processo de meu letramento iniciou-se somente mais tarde, já que inicialmente a única coisa que eu lia eram alguns anúncios de outdoors nas ruas. A respeito de alfabetização e letramento, tomo como referência um trecho do texto de Lúcia Rottava:
“Alfabetização significa apenas a ação de ensinar/apreender a ler e a escrever, enquanto letramento diz respeito à condição de quem não apenas sabe ler e escrever, mas cultiva (dedica-se a atividades de leitura e escrita) e exerce (responde às demandas sociais também dessas mesmas habilidades) as práticas sociais que usam a escrita.”
(ROTTAVA, 1998, p. 12)
Na pré-escola eu me sentia o guru da turma. Todas as minhas ilustrações eram acompanhadas por um balão de fala, ainda que com palavras um pouco deficientes. Entretanto, não atribuo à escola meu letramento – o que ela fez nos anos seguintes foi nada mais que desenvolver minha capacidade de decodificar os signos da escrita.
“A escola alfabetiza acreditando estar expondo os alunos à pratica da leitura, na verdade o que está fazendo é ‘treinando-os’ a simplesmente decodificarem um material escrito”
(ROTTAVA, 2000, 13).
Foi só mais tarde, quando fui presenteado por uma prima minha com um enorme livro, uma compilação intitulada Um Tesouro de Contos de Fada lindamente ilustrada, que se deu início o meu processo de letramento.
A princípio o que me chamou a atenção foram as ilustrações magníficas, mas pouco depois já estava encantado com os tantos mundos que visitava. Logo, como consequência da leitura, aprimorei minha escrita o bastante para ler de modo mais crítico as cartas que o Papai Noel deixava para mim, e pude chegar à conclusão de que ou o bom velho não existia, ou havia sido alfabetizado por meu pai. Não tardou para que o Papai Noel se tornasse literatura para mim, tanto quanto as personagens de Andersen e dos Grimm.
Passadas algumas tantas páginas, encontrei para mim um dos amigos mais verdadeiros que já tive em um período em que a vida tornava-se cada vez mais assombrosa. Entre o mundo ideal que me fora ensinado em casa e o mundo rude vomitado pela escola, o Dr. Watson mostrou-se uma companhia preciosa. A figura de Sherlock Holmes e o mistério que envolvia suas aventuras deram a mim um novo mundo. As histórias de Arthur Conan Doyle tiveram papel fundamental em minha formação como leitor. Nesse ponto da minha vida a literatura tornou-se parte de mim.
Como letrado, pouco a pouco meus gostos literários amadureceram, e pouco a pouco meus conhecimentos linguísticos foram se ampliando ao passo que se ampliava também meu conhecimento de mundo. Conheci Tolkien, Poe, Hesse; desenvolvi paixões por Machado de Assis e Jorge Amado. Cada livro contribuía para a leitura de outro, cada conhecimento adquirido por uma leitura prévia era um degrau para um novo conhecimento.
“A compreensão de um texto é um processo que se caracteriza pela utilização de conhecimento prévio: o leitor utiliza na leitura o que ele já sabe, o conhecimento adquirido ao longo de sua vida. É mediante a interação de diversos níveis de conhecimento, como o conhecimento linguístico, o textual, o conhecimento de mundo, que o leitor consegue construir o sentido do texto”
(KLEIMAN, 1995, p. 13)
Desse modo, assimilei na leitura seu papel incontestável na preservação e construção de novos saberes. A literatura não era mais uma simples distração: passou a ser formação. Adentrei nos versos de Augusto dos Anjos e de Mário Quintana e fi-los pedaços de mim. O romance 1984, de George Orwell, foi um soco no meu estômago; O Lobo da Estepe, de Hermann Hesse, um uivo nos meus vazios. A leitura não me era mais uma fuga; a leitura era uma
“[...] prática social circunstanciada, favorecendo o alargamento do espírito e das possibilidades de atuação e intervenção na sociedade. [...] Um valor, portanto. Um valor que carrega um princípio de humanidade e que implica, mais que o simples hábito, uma atitude.”
(BRITTO, 2012, p. 30)
Parafraseando Kafka, a literatura tornou-se o machado que constantemente quebra o mar gelado em mim.
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