terça-feira, 18 de julho de 2017

Minha Alma Fria

Aluno 164
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Duas histórias de pneus furados
Rodovia José Tiscoski em Santa Catarina, entre Sombrio e Balneário Gaivota. Um breu só. Eu, sozinho com meu cão. Num surto de desespero resolvi fazer essa viagem, fugir um pouco das minhas obrigações como pai e marido. Sou um covarde. Agora estou aqui com o pneu furado. Troquei as rodas do Tempra e a chave-de-roda não encaixa mais nesse modelo novo, eu não imaginei ser pego nesse imprevisto. De um lado, pasto. Do outro, também. Nem uma viva alma passará aqui no horário das 2h.
Deveria ter parado num hotel em Sombrio, mas não o fiz. O cão dorme no banco traseiro e eu, do lado de fora do carro, sento no chão escorado na roda cujo pneu furou. Já botei o triângulo para sinalizar. Fico a ouvir o som da natureza, dos insetos. A única solução é esperar amanhecer e buscar ajuda, já que não posso realizar a troca sem a porra da chave-de-roda correta. Um caso ocorrido há nove anos me vem à mente. Era uma época de quando a vida era bem mais fácil e eu não sabia; me preocupava com questões secundárias. Excito-me com a lembrança, entro no carro, pego um bloco de notas no porta-luvas, ligo a luz interna e começo a escrever:

“Era final de tarde de uma sexta-feira de janeiro de 2008. Recém havia sido demitido da farmácia em que trabalhava como motoboy e estava contente, saltitando de alegria. Como, oh Senhor, pude ter nascido tão vadio? Como, oh Pai dos Céus, pude nutrir tamanho vínculo com as ideias inversas a um ‘bom cidadão’? Por qual motivo adoro tanto a noite e seus desprazeres? Que tamanha magia encontro eu ao me relacionar com pessoas à margem da sociedade? O que faz uma demissão me deixar tão contente, nesse caso? Enquanto pensava nestas e em outras relevantes questões da minha vida, me telefona um amigo:
– E aí, Jacá. Com muito prazer me apresento, Patrick, o metroviário!
– Não era rodoviário?
– Não vacila, irmão. Fui finalmente nomeado em um dos trocentos concursos que fiz. Nem lembrava desse! É de 2004.
– Então tu vai ser um rodoviário-metroviário?
– O trem paga mais, então larguei o busão. Há pouco deixei meus papéis encaminhados. Viva a estabilidade!
– Também tenho motivos pra comemorar hoje. Foi pra isso que tu me ligou, certo?
– Evidente que sim. Já tô aqui com o presidente. O Conhaque Presidente.
– E na Intendente Azevedo, tá esquisito? Passei por lá mais cedo e não vi ninguém no movimento...
– Passei ali e no Caranda na ida à Secretaria. Nada. Acho que fecharam o cerco em tudo que é boca da cidade.
– Depois que o josnel do Rafinha matou o casal de médicos, ainda vai levar uns vários dias pra baixar a poeira.
– Ontem na Estrada dos Batillanas revistavam até as crianças. Querem por que querem encontrar ele.
– E todos os demais moradores da vila, na verdade, desejam mais é que ele se foda e vá em cana, eu suponho...
– Com certeza. Dizem que é pra aprender a não ficar nervoso em assalto. Além do mais, ninguém aguenta mais a polícia na porta de casa o tempo todo com as buscas.
– Eu só sinto pena, tu me conhece. Vai passar no mínimo uns nove anos lá no inferno e ainda por cima apanhando na cara.
– É o preço de ser favelado. Um dia tu vai entender, playboyzinho. Nos vemos em qual bar?
– No Boteco da Dona Cida lá pelas 21h.

Chego em casa, tomo um banho e pego o carro. Um Chevette Hatch 1981, cor de vinho, original, puro charme. Ligo o rádio, declino o assento e boto uma fita do De Menos Crime. Arranco. É um carro simples, motor 1.4 de quatro marchas, com platinado, porém em boas condições e lata lisa. É muito bom esticar marchas e guiar carros antigos. Saio da Pedro Boticário, pego a IIIª Perimetral e depois a Avenida Ipiranga. Finalmente entro na Lima e Silva e, maldição, sinto o volante pesado. Furou o pneu.
O Dona Cida estava com bastante gente no entorno. Resolvo entrar e deixar o carro lá com o pneu murcho, por sorte bem estacionado. No rádio do boteco, um bom samba do Wilson das Neves embalava a noite e o seu Izolino, o atendente, já estava agarrado a um copo de cachaça de maracujá, gritando palavras de ordem a favor do governo Lula, que estava promovendo um dito ‘crescimento econômico’ expressivo, principalmente para os comerciantes.
No fundo do bar encontrei meu amigo. Estava com mais dois.

– Olá – disse um cara.
– Olá, olá a todos. Tudo bem, Patrick?
– Tudo ótimo. Deixa eu te apresentar, esses são Basílio e Vicente, professores do cursinho Mérito Popular.

Mérito Popular? Fiquei pensativo. Os conhecia de vista na militância política, nas lutas diárias. Que porra de mérito popular? Eu sou realmente um anarquista muito arredio. Um cursinho popular com a palavra ‘mérito’ no nome fica muito estranho.

– Muito prazer, senhores. Sou o Jadílson.
– Jadílson, aquele que ‘já disse’ tudo o que tinha a dizer?

Quase caio da cadeira. Que trocadilho de merda. Estariam, ou este sujeito em especial, estaria já bêbado o suficiente para tecer tal comentário desrespeitoso? Mas que piada mais infame, ridícula, sem graça. No dia anterior, numa reunião da Aglutinação de Esquerda – frente política criada para discutir ações na cidade –, eu havia feito uma fala criticando uma corrente do PT que aquele bostinha representa. Quis ele, então, me provocar para discutir o assunto?
Entendo o Patrick. O conheci quando trabalhava numa pizzaria. Um rapaz de vila, caçula de cinco irmãos que, embora também seja muito doido, é o único entre eles que não é fumador de pedra. Hoje é um estudante de Economia ‘graças’ a estes dois, seus professores de história no tal cursinho.

– E tu és o Basílio, eu suponho. Como te sentes tendo um nome do século II? – provoquei, porém simpático.
– Nem me fala. Já me causou constrangimentos na adolescência, mas hoje tenho orgulho de seguir os passos do meu pai, que ganhou esse nome do meu avô, que por sua vez também herdou o nome do seu pai.
– Ah é, saquei. Tu é filho do Basílio Magalhaens. Repare a chiqueza, é ‘Magalhaens’, não ‘Magalhães’. Agora bem que te acho parecido com ele fisicamente. Essa barba falhada aí, o rosto chupado, até os óculos de modelo parecido. É a cara dele depois que assumiu o Ministério da Cultura em 2003. Porra! Estou falando com o filho do ex-ministro da Cultura. Mas que satisfação!
– E eu estou falando com quem? – respondeu, com jeito azedo.
– Jadílson. Aquele que ‘já disse’ tudo o que tinha a dizer. E digo de novo: teu grupo político nada mais faz além de angariar gente com o intuito de engrossar as fileiras da campanha da tua futura candidatura!
– Pô, galera, não sabia que haveria discordâncias nessa mesa. – disse Patrick.
– E o teu grupelho, todos sabemos, nada faz, em nada acredita. Vocês ficam causando com suas roupas rasgadas, suas Monarks velhas, promovendo arruaça. – retrucou aquele que até então estava calado, o Vicente.
– Tu tá nos confundindo com os anarcopunks, idiota.
– Já que vamos discutir esses assuntos, vou buscar um litro de Brahma. Mas já adianto: a conta quem paga são todos, não adianta sair de fininho depois. – e lá foi meu amigo buscar a cerveja.

As horas foram passando e a conversa ficou num tom mais ameno. Se algo que todos nós tínhamos em comum era o gosto por se embriagar mais. E assim fomos conversando até que o gelo inicial foi quebrado: já conseguíamos conversar decentemente, sem ofensas, inclusive as vezes ríamos. O assunto, porém, saiu do meu escopo repentinamente e se voltou para o futebol. Eu, que não tinha time, resolvi sair para fumar um palheiro na rua.
A Rua Lobo da Costa estava fervilhando de gente naquela noite e tinha uma apresentação teatral rolando ali. Era um coletivo de teatro de rua quilombola e fiquei observando um pouco a peça que tinha como tema o genocídio da população negra brasileira e o descaso da classe política frente aos abusos policiais. O espetáculo trazia uma sátira muito interessante acerca do que era chamado de ‘militância branca’, se referindo a organizações políticas que tinham um principal ‘líder’ por trás. E esse líder em geral é um homem branco de classe média, lapidado por medalhões do partido para concorrer em eleições futuras.
O enredo foi se desenvolvendo ironizando esse suposto ‘líder’ e intelectuais que discorrem sobre a necessidade de uma ‘tomada de consciência’ da classe trabalhadora, enquanto a juventude negra segue encarcerada pelo Estado com a ajuda do seu aparato repressor. A ironia girava em torno de um personagem que fazia o papel de ‘intelectual’, e a graça era fazê-lo realizar algumas tarefas braçais, sem resultado satisfatório. Essa situação me deu uma ideia e voltei ao bar.

– Então tá, seu Basílio, te faço um desafio.
– Mas que desafio?
– Eu acho que tu só teoriza e não deve saber nem trocar um pneu!
– Ahh, mas que bobagem. – e resmungou: – Pois me traz aqui um carro que troco o pneu com um braço só!
– Não tenho como trazer. O pneu está furado, entendeu? Meu carro tá ali na João Neves. Se tu trocar o pneu, convenço meu coletivo das vantagens de vocês usarem carro de som no próximo ato contra o aumento das passagens.
– Fechado.

A situação se desenhou da seguinte forma: fomos nós quatro até onde o carro estava. Comecei a abrir o porta malas, retirar o carpete, o estepe, puxar a caixa de ferramentas. Tirei a chave-de-roda e o macaco. Nada além disso é necessário pra trocar um pneu, ao meu ver. Peguei uma cadeira de praia que eu tinha no carro e me sentei comodamente para observar.
Basílio e Vicente, ambos, tiraram as suas camisas de botão, suponho que para não sujar de graxa. Patrick sentou na sarjeta e tirou da mochila o Conhaque Presidente. Que maravilha, tínhamos bebida. Eu imaginava que naquela altura o conhaque tinha se esvaído sem eu nem ter visto a sua coloração ou sentido seu cheiro. Ofereci um trago para os ‘trabalhadores’ e voltei à cadeira que estava muito confortável.
Depois de alguns minutos procurando, finalmente aqueles dois encontraram o lugar onde apoiar o macaco. Na lataria do carro perto do pneu traseiro esquerdo tinha uma seta desenhada para cima, então era só usar a cabeça e pensar que nada é porque é por um simples acaso. Assim como as pessoas têm uma razão para vir ao mundo, todo e qualquer sinal representa algo em alguma coisa. Compreendendo que tudo na vida tem um motivo, o macaco só poderia ficar no único lugar do carro que tem uma seta desenhada.
Uma, duas, três, quatro, cinco vezes. E assim o carro foi subindo mediante as bombeadas que os guris iam dando no macaco. É desnecessário, até para evitar possíveis trabalhos excessivos posteriores, que se levante o carro muito alto. Isso porque não existe vantagem em deixa-lo mais alto no sentido de ser mais fácil usar a chave-de-roda, tampouco na hora de puxar o pneu faz alguma diferença.
Pois bem. O macaco foi então pego e montado. O lugar apropriado para ele foi procurado e encontrado. O instrumento então fixado no lugar permitiu que com certa facilidade se levantasse o carro, que subiu uns bons 50 centímetros.

– Agora é só usar a chave-de-roda. – disse eu, dando risada.
– Não precisa nos ensinar! – insistiram, brabos.

Quando se começa um trabalho, a primeira coisa que se deve fazer é pensar bem nas etapas. Os rapazes se viram na incumbência de montar a chave-de-roda, que naquele caso, para poupar espaço e entrar dentro do lugar do estepe, era dividida em dois pedaços. Ofereci um trago para que pensassem no que estavam fazendo. Depois de uns bons dez minutos, Vicente percebeu que, para juntar as duas partes da chave, precisava de uma porquinha que ficava acoplada na ‘cabeça’ de uma das partes para evitar extravio.
Patrick e eu, nesse ponto, já gargalhávamos muito, pois sabíamos o que estava por vir.

– Parem de rir, seus idiotas!

Basílio encaixou a chave-de-roda no primeiro dos quatro parafusos da roda. Foi então que desabamos em risadas. Era evidente que eles nunca conseguiriam tirar aquele parafuso, nem ao menos movê-lo um milímetro. Para se trocar um pneu, antes de levantar o carro com o macaco, é preciso, com o carro no chão, afrouxar os parafusos da roda para, quando o pneu estiver no alto, ser possível terminar de tirá-los.
A cara de constrangimento era bastante evidente. A solução seria abaixar o carro, afrouxar os parafusos e subir com o macaco novamente. E isso foi feito, mas na hora de afrouxar os parafusos – e isso nem eu mesmo esperava – eles estavam completamente emperrados. Muito duros. Fui ajudá-los, pedi que segurassem a chave, pressionando-a contra a roda, enquanto eu subia em cima dela e tentava forçar com o pé, usando o peso do corpo. Não consegui, mesmo pulando em cima da chave.
Basílio e eu éramos dois magrelos. Patrick e Vicente eram fortes, mas nem estes foram capazes de mover nenhum dos parafusos.

– Então já era. A culpa é dessa lata velha! – bradou Basílio.
– Que nada, cara. Fiquem aí tentando. Eu tenho uma solução. Vou ir buscá-la. – falei, já caminhando. – E tu, Patrick, não enjoou desse conhaque puro? Quem sabe um refrigerante de cola?
– Sou parceiro! Estou totalmente estragado por dentro.
– O refri vai te estragar mais ainda. Mas tudo bem. Esperem-me.

Subi novamente toda a Lima e Silva até chegar no mesmo bar que estávamos. Pedi um refrigerante de cola de dois litros e uma cervejinha para tomar no local, aproveitando que tinha recém começado um show de samba de um grupo do bairro. Deu tempo de escutar quatro músicas do Cartola antes de voltar. Cheguei no carro, estavam todos sentados na calçada.

– Aí, Patrick. Pega o refri aqui. Vamos misturar direto na garrafa de conhaque.
– Não é melhor misturar na garrafa pet?
– Não, meu caro.
– E o que tu foi fazer que demorou tanto? Cadê a ferramenta que ia buscar? – indagou Vicente.
– Acalmem-se, senhores. – eu ironizava, pensando estar num teatro. – Aqui vos mostro um superproduto capitalista que mudará a concepção de vocês sobre o que é saudável.

Após Patrick pegar refrigerante suficiente para misturar no conhaque, chacoalhei a garrafa que continha apenas o refrigerante de cola e joguei por cima de todos os parafusos da roda. Como era uma garrafa de dois litros, simplesmente encharquei os parafusos com bastante líquido. Ninguém entendeu o motivo de eu fazer aquilo, mas três minutos mais tarde já era visível aos olhos que o refrigerante tinha afrouxado os parafusos.

– Esse é o nosso supercapitalismo. Vende um produto corrosivo para que bebamos. Além do mais, altamente viciante. Por isso é necessário combater o capital e, nessa luta, espero que estejamos juntos. Vou falar com a Força Autônoma para que vocês levem e usem o carro de som, desde que nos deixem também usar um pouco do microfone, ok? Agora deem licença, vou terminar de trocar o pneu, basta levantar o carro outra vez, tirar os parafusos que agora estão frouxos, puxar a roda para arrancá-la, pegar o estepe, botar no lugar, encaixar os parafusos e apertar um pouco, soltar o macaco e apertar mais firme os parafusos outra vez. E não se esqueçam: abaixo o consumo de Coca-Cola, porra!”

Aurorava. Viajei no tempo escrevendo essa porcaria. Foram folhas e mais folhas do meu bloquinho. Um turbilhão de pensamentos começou a assolar minha cabeça. Quando dos meus quase-vinte ou vinte-e-poucos anos de idade eu fazia muita merda. Tanta merda, mas nenhuma delas nunca chegou perto de abandonar mulher e filha. Acho que, para chegar nesse extremo, em algum momento deixei de entender quem eu sou e o que quero da vida. Nunca mais militei politicamente. Virei tão somente um reclamão.
Tranquei o carro e chamei o cusco, já rolava um vislumbre de luz. Maldita estrada inútil que ninguém usa. A madrugada inteira ali, escrevendo, com o triângulo na frente do carro e as luzes acesas, e se vi três carros passando foi muito. Segui em direção a Sombrio; fazia uma friaquinha gostosa – combinou com o gelado da minha alma. Fui pensando: “acho que errei durante todos esses anos, jamais poderia ter me considerado anarquista, mesmo me organizando em coletivos do tipo. Não deveria ter achado minha ideologia superior. Se eu tivesse de fato problematizado minha condição social, meu excesso de virilidade, meus privilégios, não chegaria aos trinta nessa situação. Preciso recuperar o tempo perdido e voltar pra Porto Alegre agora mesmo”.
Os carros começaram a passar, mas não muitos. O sol nasceu às minhas costas. Talvez o melhor fosse esperar do lado do carro uma boa alma parar e ajudar, um morador da região talvez. Mas não sei, estava muito bom caminhar e estar junto dos meus pensamentos. Leminski escreveu isso uma vez: “andar e pensar um pouco, que só sei pensar andando”. Então continuei passo a passo, rumo a mais uma epopeia do pneu furado. Segui vagarosamente, eu e meu cão – meu único amigo no momento...

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