Aluno 114
Reescrita
Uma vida é sempre marcada por ritos de passagem. Muitos deles aparecem no nosso caminho sem que nem mesmo nos demos conta de que se tratam de um divisor de águas na nossa existência. Há, no entanto, uns poucos que fogem do acaso e das imposições, para, então, cair em nossas mãos junto com a decisão de realizá-los ou não ‒ como foi o caso do meu bat-mitzvah. Uma experiência que me marcou não apenas por sua importância cultural, mas por ter permitido a aquisição de uma série de aprendizados que garantiram uma melhor compreensão desse processo do qual a leitura foi tanto ferramenta quanto produto final.
Segundo a tradição judaica, essa cerimônia que marca o fim da vida juvenil e início da adulta se dá por meio da leitura de um dos 54 trechos que compõem a Torah, o livro sagrado da religião. Essas passagens, denominadas parashot, são lidas semanalmente por uma menina de doze anos ou por um menino de treze. A cada semana varia-se não somente a parashah (singular de parashot) que é lida, como também a pessoa que a lê. Assim sendo, no dia 23 de junho de 2012, foi a minha vez de realizar aquela que seria uma das mais memoráveis e significativas leituras da minha vida.
Essa não poderia ser executada de uma hora para outra sem qualquer preparação prévia, uma vez que contemplou um texto bíblico, escrito em uma língua e em um alfabeto que eu desconhecia e com uma grande densidade de possibilidades interpretativas. Afinal, como nos diz Paulo Freire, o ato de ler “implica sempre percepção crítica, interpretação e ‘re-escrita’ do lido” (1989, p. 14) e, nesse caso, nenhum desses processos poderia se efetivar sem que houvesse um estudo anterior a eles.
Conforme afirma Kleiman em sua obra Texto e leitor: aspectos cognitivos da leitura, em função da atividade de ler consistir na atribuição de significado a um texto escrito, é necessária a ativação, por parte do leitor, de diferentes níveis de conhecimentos anteriores à leitura para garantir a compreensão durante esse processo (1995, p. 07 – 27). Dessa forma, sem saber da fundamentação teórica que embasava a minha experiência, eu passei a me dedicar a apreender saberes que viriam a ser imprescindíveis para o meu bat-mitzvah.
Em um primeiro momento, me deparei com a necessidade de aprender o básico da língua hebraica. Ou seja, de adquirir aquilo a que Kleiman se refere como “conhecimento linguístico” e que coloca como um conhecimento implícito para falantes nativos (1995, p. 13). Para mim, contudo, significou uma nova e complexa jornada de alfabetização: precisei me acostumar com novos símbolos, com a ideia de ler da direita para a esquerda e de pronunciar (ou pelo menos tentar pronunciar) fonemas inexistentes na língua portuguesa.
Mais tarde, já tendo quebrado as barreiras mais básicas da língua, me deparei com outros problemas: como dar sentido à história que se encontrava diante de meus olhos? Como retirar aprendizados relevantes, ainda nos dias de hoje, de um texto que tratava tanto da questão da pureza e da impureza dentro da religião, como de um sacrifício de uma determinada espécie de vacas, como de um episódio que abordava escassez de água e a desobediência a deus por parte de Moisés?
Basicamente, estudando história e cultura judaica e associando meus novos aprendizados com as percepções que eu tinha do mundo. Em outras palavras, desenvolvi e aprimorei meu conhecimento enciclopédico para depois relacioná-lo com o meu conhecimento de mundo. Ambos utilizados no processo de compreensão quando estão vinculados ao texto que lemos em função deste contar com informações implícitas que só serão percebidas se identificarmos os referentes extralinguísticos que constam nele (KLEIMAN, 1995, p. 20 e 22).
Só pude, portanto, realmente entender a minha parashah ao ativar saberes que desenvolvi ao longo de minha preparação tal como aqueles que reuni no decorrer da minha vida. Foi graças a eles que esse ritual não se restringiu a pronúncia de palavras vazias. E foi ao relacioná-los com aquilo que lia que efetivamente consegui interpretar o texto que estava em minha frente e significá-lo de maneira que esse deixou de ser um texto distante e sem qualquer ligação com o mundo de hoje para mostrar-se uma nova fonte de aprendizados que apliquei em leituras seguintes.
Referências Bibliográficas:
KLEIMAN, Angela. Texto e Leitor: Aspectos Cognitivos da Leitura. 4ª ed. Campinas, SP: Pontes, 1995.
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler. 23ª ed. São Paulo, SP: Cortez Editora, 1989.
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