sábado, 8 de julho de 2017

Lembrança da época dos camelôs

Aluno 164
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Não existe noção do tempo nem da distância quando se é criança. As idas ao Centro da cidade pareciam uma aventura. Caminhar lá era se perder na imaginação. Perder-se no tempo e espaço. Era criar histórias na cabeça, fitando as pessoas – na infância não existe constrangimento ao encarar a gente da rua. A Praça XV, no Centro de Porto Alegre, era repleta de vendedores ambulantes, um centro de compras a céu aberto que vai ficar na minha memória para sempre. Aquele mundaréu de gente, aqueles gritos, homens e mulheres amontoando objetos, puxando lonas, ocupando os espaços e nós, transeuntes, desviando e caminhando e quase que tropeçando nos outros. Eu, criança, segurava firme a mão da minha mãe, minha protetora no meio daquele mundo evidentemente selvagem – desde pequeno compreendi isso.
“Mãe, se eu for contigo pro trabalho, posso usar um computador?”, eu perguntava. “Pode”, respondia. “Posso ficar olhando as palomas também?”. “Pode sim, filho”. “Podemos almoçar no Amarelinho?”. “Claro que sim, sempre almoçamos lá”, afirmava minha mãe. Ela trabalhava na Secretaria Municipal de Educação, e eu evidentemente nem sequer fazia ideia da importância do prédio que eu entrava diariamente na Rua da Praia. Lembro de algumas mulheres, colegas da mãe, me bajulando, querendo me ouvir por causa do sotaque (nascido na Espanha e filho de pai peruano, quando pequeno eu misturava várias palavras, o que devia ser uma fofura para os ouvidos delas).
Algo que me impressionava era a altura do prédio. Acho que era o décimo quinto andar onde eu ficava. Uma repartição pública cheia de computadores de formatos hoje inimagináveis, telefones, fax, furadores, picadores de papel, grampeadores de todas as formas e demais penduricalhos que os anos 90 nos proporcionaram. Minha diversão com os computadores se resumia a escrever. Não muitas funções existiam, ao menos que eu soubesse mexer ou me fossem úteis. Evidente que haviam jogos, “mas todos aburridos”, eu dizia, por causa da lentidão daquelas máquinas – acho que me deixavam sempre com o computador mais capenga.
“Era uma vez um homem. Ele era tão enrugado que não dava pra ver quando seus olhos se abriam ou fechavam”, ou então, “havia uma mulher que era tão magra, mas tão magra, que eu a confundia com o manequim das roupas que ela vendia”. Ok, talvez minhas histórias não tivessem essa precisão na escrita, afinal eu era uma criança, mas hoje fico feliz ao lembrar que eu já tinha capacidade de inventar narrativas a partir de coisas, e principalmente pessoas, que eu via no trajeto da rua.
Recém alfabetizado – ou quase isso –, lembro de uma descoberta: a palavra “estória” – se é que ela é considerada uma palavra, acho que caiu em desuso. Não lembro exatamente onde foi a primeira vez que li essa expressão, acho que foi num gibi, mas certamente me tocou da seguinte forma: se fosse escrita com “e”, era uma narrativa inventiva, se fosse com “h”, eu tomaria como verdade. Assim me tornei um adorador de estórias. Como numa peça de teatro infantil, me punha na frente do computador e começava a inventar personagens mirabolantes, como se tivessem superpoderes, ou então animais falantes, coisas de criança. Imaginava-me podendo voar, saltando daquele impressionante 15º andar, indo atrás das palomas lá embaixo na beira do rio Guaíba, que era tão deslumbrante pra mim.
A escrita tradicional, em lápis ou caneta e papel, ficou em plano secundário. Eu desde novo entendi a facilidade que o teclado nos traz. Acostumei-me desde cedo a digitar palavras, não necessariamente a escrevê-las no papel. Transcrever histórias infantis também foi algo muito tocante na minha infância. Acostumado com os livros e incentivado a tê-los por perto, tinha como hábito reescrever – digitar palavra por palavra mesmo – obras inteiras, por vezes revisitando-as. Lembro de uma vez que copiei de um livro o conteúdo inteirinho dele, apenas trocando o nome do personagem principal “Juca” por “Roni”, por pura questão estética infantil que hoje me parece inexplicável.
Enfim, o ato de escrever, inventar, recriar e reciclar textos me acompanha desde que entendi o que são letras e para que servem. Com o tempo soube fazer melhor uso dessas letras, mas nunca vou esquecer desse prédio onde num computador velho do fim dos anos oitenta eu inventei minhas primeiras estórias a partir dos marcantes rostos das pessoas que eu via quando atravessava a Praça XV, ainda mais que, agora, em 2017, continuo achando linda a Rua da Praia e seus arredores, ao menos daqui da comodidade de uma mesa externa do Amarelinho, hoje chamado bar do Laucir, lugar que escolhi para redigir esse texto e lamentar o tempo que passou e que já não volta mais...

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