Aluno 181
Reescrita
Não queria escrever sobre isso. Há um mês e meio eu venho tentando não faze-lo. Porque todas as vezes que comecei a redigir algo sobre este tema, acabei fazendo como se ele fosse ler, e ele não vai. Nunca mais vai. Mas, vamos lá, afinal não consigo, mesmo, escrever sobre outra coisa frente a tal tema. Um acontecimento relativo a algum familiar, amigo ou desconhecido, que provocou aprendizado: a morte do meu irmão.
Foquemos, então no acontecimento. Uma noite de segunda-feira como outra qualquer. Logo depois seria terça, e tudo estaria bem. Uma noite de segunda-feira, da metade de março, quando já não é mais tão verão em Porto Alegre, mas a temperatura ainda segue alta. Quando o frio ainda não obriga ninguém a ficar em casa. E por isso as pessoas saem.
Ele saiu naquela noite, como fazia em quase todas. Saiu de onde estava, de onde morava, para onde ele sempre ia. Para aquele apartamento, onde moram nossos amigos, que ele tanto frequentava e a gente sempre encontrava. As pessoas insistiram para que ele ficasse, naquela noite. Para que ele não voltasse. Para que ele permanecesse onde estava. Primeiro, em um lugar e, depois, em outro. Insistiram. E eu também insistiria, se não estivesse a tantos quilômetros de distância. Eu tentaria todas as vias possíveis de manter ele aqui, trazendo-o, talvez, para a minha casa. Mas nada do que eu faria é real neste momento, pois tudo isso já aconteceu, e meus devaneios sobre o tema fogem da realidade dos fatos.
Voltando, portanto, aos acontecimentos, naquele dia, ele voltou. Voltou para o lugar de onde tinha saído mais cedo. Chegou, já era tarde. Deve ter usado o computador, olhado coisas pela internet, escutado e talvez até tocado alguma música. É provável que tenha fumado alguns cigarros também, pois eles acabaram. E ele queria sair para comprar mais e, novamente, tentaram o impedir. Alegaram que ainda tinha cigarros, e que estes cigarros poderiam ser divididos com ele. Porém, como de costume, ele não se convenceu e insistiu em sair.
Naquela noite, pela última vez, ele pegou o skate. Pela ultima vez, ele abriu a porta e, antes de fechar, se despediu com carinho. A última e definitiva vez que fechou a porta e, depois, o portão. Que desejou "boa noite" ao porteiro e desceu pela ladeira embalando seu skate. A última vez que ele chegou no posto de gasolina, trocou o dinheiro que tinha pelo cigarro que queria. Saiu, ascendeu seu cigarro e voltou a embalar o skate. Foi parado por um alguém que lhe pediu um. Ele nunca negava cigarros para ninguém e todas as vezes que lhe negaram foi motivo de longos debates, sobre como todas essas coisas materiais são passageiras, e sobre como dividi-las as torna um pouco mais duradouras. É claro que, naquela noite, ele não negou. Parou, deu um cigarro. Deve, inclusive, ter emprestado o fogo.
Este é que eu considero o último relato de sua consciência. O último relato onde eu ainda encontro algo dele nele mesmo. Depois, quando o homem bêbado joga o carro em cima dele, e o deixa agonizando no chão, sangrando e morrendo no chão da ciclovia, eu não o encontro mais, a não ser em nós, que ficamos aqui depois de sua partida. Esta partida mostrou, mais uma vez, como a morte é, mesmo, implacável. Essa maldita função do nosso corpo humano, de simplesmente parar de funcionar. De ser limitado e não sobreviver à todas as dores, quebras e impactos. Esse limite humano até onde o corpo suporta, anda vivo, os ferimentos e a perda de sangue. O último e mais complexo produto da natureza, e mesmo assim, tão frágil e mortal. De sermos todos mortais e de, mais cedo ou mais tarde, trilharmos todos nós esse destino.
É necessário amar a vida, apesar de tudo. Amar verdadeiramente a vida, sem idealizá-la. Explorar as possibilidades de nossos corpos humanos limitados, porém, vivos. Amar a vida e enxergá-la tal qual ela se dá, com a noção crítica dela e de tudo que a envolve, para que não nos iludamos nem com sua duração, nem com sua limitação. Para que possamos pegá-la de verdade, agarrá-la com os nossos braços e nossas pernas, com nossas mãos e nossos pés. Para que possamos olhar todas as nossas dores e nossas alegrias com os olhos limpos, sem adornos e sem medo. E também para transformá-la, é necessário muito amor.
E, assim, também é necessário amar os vivos. Amar aqueles que podemos olhar nos olhos e dizer-lhes sobre tudo aquilo que entenderão. Que podemos abraçar e sentir o calor de seus corpos vivos e o toque macio de suas peles. Que podemos beijar-lhes as bochechas e as bocas sabendo que haverá, nos dois casos, reações. Os vivos com quem podemos compartilhar nossa vida e nossa miserável, porém, única existência. Os vivos com quem compatilhamos nossas agonias e nossas alegrias.
Era assim que ele fazia. Foram 25 anos e 11 meses de amor à vida, sabendo de todas as suas limitações e contradições. Vinte e cinco anos e onze meses de intense exploração de suas capacidades humanas de aprender, de fazer e de amar. E sempre insistiu que todos fossem assim também. Como se tudo estivesse prestes a acabar. "A vida é curta demais pra isso", ele me dizia. E ele estava profundamente certo, dolorosamente certo. Certo de tal forma que ainda me é difícil expressar em palavras.
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