Aluno 156
Reescrita
Será que somos tão democráticos quanto achamos que somos ou carregamos reis escondidos em nossas barrigas, que lá de dentro nos fazem exigir tratamento especial e apresentar comportamentos egoístas? Foi algo que não me perguntei quando eu e Fernando nos conhecemos no primeiro ano do ensino médio, entre os quinhentos alunos daquela escola estadual na cidade de Camaquã, interior do Rio Grande do Sul. Ao longo do primeiro mês, construí uma visão positiva sobre o sujeito, pois ele sorria para todos, fazia elogios a pessoas que acabara de conhecer, vivia brincando, parecendo sempre simpático. Não éramos colegas, mas o observava nos intervalos das aulas e durante algumas reuniões que tínhamos juntos. Através desse contato, julguei que ele deveria ser uma pessoa que ouve a opinião de todos antes de tomar ações, pois me parecia lógico que alguém com tanto carisma fosse um bom ouvinte. No entanto, descobri mais tarde que às vezes precisamos aprender mais sobre democracia.
Participávamos dessas reuniões uma vez por semana porque logo na primeira semana de aula fomos convidados a participar de projetos extracurriculares, que funcionavam assim: os professores podiam propor um tema em sua área e convidar até seis alunos para pesquisarem sobre, orientando-os quanto às leituras necessárias, às metodologias de pesquisa, às formas de apresentação, aos cronogramas do projeto. Fazíamos parte de grupos distintos, mas éramos orientados pela mesma professora, eu pesquisando sobre os dados dos leitores na escola (frequência e tipos de leitura, por exemplo) e Fernando sobre as tradições orais da cidade (lendas e contos populares); e, assim, esse formato de trabalho exigia que as decisões tomadas, embora orientadas, fossem feitas de forma democrática no grupo. Elas variavam desde as mais simples até as mais complexas: que pessoas entrevistar para compor os dados da pesquisa, que cores usar no banner para uma apresentação, para citar duas. E no meio disso, eu me julgava bastante democrático, pois era sempre uma das pessoas que mais defendia, em meus discursos, a cooperação nos grupos. Tudo parecia harmonioso – tinha uma visão de que eu e Fernando, cada um em seu projeto, éramos devidamente justos, prezando pela cooperação entre os pesquisadores. Exercitávamos ali, entretanto, despercebidos, aquela máxima “faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”.
Três meses se passaram com nossa participação nessas reuniões antes que eu descobrisse esse meu erro de julgamento. Lembro que na última reunião do terceiro mês, entrei na sala e notei a ausência de Fernando. Ao perguntar sobre o motivo, o grupo me explicou que ele tinha sido afastado do projeto. Sentei e fiquei alguns segundos sem poder dizer alguma palavra, e quando pude só perguntei por quê. Então os seus colegas de pesquisa me contaram: seu comportamento começou pequeno, ele aos poucos ia criando o rei em sua barriga, impondo sutilmente suas opiniões. Como era querido por todos, acabavam engolindo suas decisões. A cada frase, eu fazia um julgamento pior, de injustiça, de culpa, de falta de democracia. Tudo isso – continuaram a me contar – servia de alimento para o rei em sua barriga crescer e exigir os méritos por todo o trabalho do grupo. Eu, ouvindo, continuava a fazer julgamentos piores.
Mas esses julgamentos eram dirigidos tanto a ele quanto a mim. Quando fui para casa naquele dia comecei a refletir sobre as vezes em que foi comum eu falar frases como “fui eu que fiz”, de peito estufado, ou tomar decisões sozinhos tais quais quando eu fiz um logotipo para o projeto sem consultar a opinião dos colegas e da nossa orientadora. Percebi que assim como aquele grupo não estava contente com o colega afastado, cujas ações tinham feito desmoronar grande parte do sentimento de amizade, o meu grupo também não andava contente. Pensei que um dia poderia ser recebido por um grupo sem paciência para me responder, um grupo cujo tom de voz havia diminuído por conta da tristeza, um grupo que já não me suportava mais. Senti medo das possíveis consequências, senti culpa, arrependimento. Mas ao mesmo tempo me senti aliviado por perceber isso e poder corrigir a tempo de que isso tudo não acontecesse comigo também. Decidi que mudaria meus comportamentos, pois percebi que a culpa que eu carregava nas costas me fazia perder o sono, porque minhas ações não condiziam com meu discurso.
E, assim, a partir do momento em que comecei a ouvir mais do que falar, vi que as pessoas têm muito o que dizer para ajudar a construir. Como vocês acham que deveria ser nosso banner? Susi, o que você acha de entrevistarmos mais um grupo de pessoas? Marta, como era mesmo aquela ideia da qual você havia me falado? – passei a perguntar. E passei a ver nosso trabalho mais colorido, contando com mais ideias diferentes.
Quanto a Fernando, como nunca nos aproximamos, uma vez que nosso contato era tão restrito, não fiquei sabendo se apresentou qualquer indício de culpa ou de arrependimento. Só sei que assim que tive consciência dos meus atos, peguei uma faca para dia após dia matar o rei que queria da minha barriga fazer moradia. Aprendi antes de morrer de indigestão com uma coroa cravada na garganta.
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