Reescrita
Aluno 50
As ruas de Porto Alegre nunca me pareceram muito convidativas, mas quando li no Zero Hora uma matéria a respeito do aniversário da “capital mais acolhedora do mundo” fui acometido por certo otimismo. E atesto a afirmação do jornal: anda-se pelas ruas, logo aparece alguém a fim de acolher celulares, carteiras, abraçar bem apertado as moças... Não existem limites pra esse tipo de amor.
Posso dizer que, de todas as lembranças de vezes em que fui acolhido pelo grande coração da cidade, uma em particular possui lugar exclusivo na minha memória. Lembro que era uma tarde muito quente e de céu totalmente limpo. Eu voltava da universidade entre uma axila suada e um aglomerado de massa quase disforme que supostamente vestia algo tigrado – o calor que fazia dentro do ônibus não me permitiu definir. No ar pairava o bálsamo do povo trabalhador, eu mesmo contribuindo para tal com a camiseta ensopada.
Sair daquele forno foi um alívio. Senti-me tão tranquilo que nem parecia que andava na orla do parque da Redenção, contudo, desconfiado que sou, não deixei de atentar minha retaguarda de quando em quando. Todo meu redor estava vazio de gente; mas eis que surge muito provavelmente brotado da terra um homem às minhas costas, o qual só fui notar ao ter ele se anunciado.
– Passa carteira e celular.
Mesmo tendo me virado não pude assimilar o sujeito. Fiquei nervoso, a visão meio enegrecida. As únicas coisas que notei a princípio foram uma faca ou canivete que o homem segurava com o braço direito e, nesse mesmo braço, uma tatuagem que não consegui identificar. Em todo caso, não houve hesitação: logo entreguei o que o assaltante me havia pedido. Ele me deu um empurrãozinho nas costas e me mandou em direção contrária a que eu ia.
– Te manda, e não olha pra trás.
Foi o que fiz. Segui de cabeça baixa, com as pernas meio trêmulas e a visão ainda escurecida. Só ao recobrar totalmente os sentidos, de volta à parada de ônibus onde eu desembarcara, foi que me atrevi a olhar o sujeito que já estava longe, fazendo ele o mesmo caminho que eu faria. Vestia boné e bermuda brancos, e uma camiseta preta e vermelha, listrada, com um número grande nas costas (provavelmente de algum time de futebol). As roupas eram batidas pelo que pude notar. Calçava chinelos.
Geralmente esse tipo de assalto é rápido. Só assimilei o que havia acontecido depois de me encontrar recobrado na parada. Consternado, desviei minha rota passando por dentro do campus do centro. O que se seguiu em mim foi uma onda de raiva e indignação: tinha que matar bandido mesmo, descer a porrada nesses vagabundos. E o policiamento, onde estava? Num acesso de fúria, tirei do bolso meus fones de ouvido e os atirei para a rua, e apressei o passo. Queria chutar a cara do marginal (ele que nem tinha cara, só meu pé nela), chutar a polícia, os carros, o muro, os postes pelos quais passava eu em passadas furiosas. E se acontecesse com as pessoas por quem tenho afeto? Minha família, minha namorada... O que faria ele com minha namorada, ainda mais se a encontrasse sozinha, como me encontrou? O parque da Redenção é grande e possui muitos cantos escuros... Pudesse eu amassar o nariz do sujeito! Amassar a cara, chutar fundo no estômago. Se eu tivesse uma pedra, um tijolo...
Porém, no meio desse fluxo colérico, vi algo que me fez parar abruptamente, e todo o ódio insensato que eu sentia cedeu lugar a um completo estarrecimento: na calçada do outro lado, pouco mais à frente e de costas para mim, estava o sujeito que me havia assaltado, na frente da lan-house que faz esquina com a rua onde moro. As mesmas roupas e a tatuagem no braço direito – posso dizer que era alguma palavra, embora escrita em letras tão enfeitadas que não pude distinguir – tornavam o fato incontestável: era ele. Mas mais que isso, o que me causou enorme estranhamento, quase cômico, foi ver que na mesma mão que antes segurava a faca, segurava agora nada menos que um formoso sorvete de casquinha. Magnífico, enrolado. Com a mão esquerda o bandido guardava minha carteira no bolso de trás da bermuda – pagara pelo sorvete. Pelos sorvetes na verdade, porque o sujeito da lan-house, muito simpático, entregou ao assaltante mais um. Foi nesse dia inclusive que descobri que o local vendia sorvete de máquina.
Eu realmente não sabia como agir. De todo modo, mesmo que tencionasse me mexer, não conseguiria. Restava-me somente observar o assaltante a se afastar, com sua atenção, para minha sorte, totalmente voltada aos sorvetes que segurava um em cada mão, os quais lambia ávido e guloso como uma criança. Contemplei-o até sumir de vista, imerso na multidão acolhedora daquele fim de tarde. Meus pés nada nem ninguém poderiam chutar, mesmo que assim eu desejasse: estavam colados, firmes, irremovíveis do chão. Minhas mãos soltaram quaisquer pedras e tijolos que eu poderia vir a carregar e, conforme se abrandava minha cólera, um riso soluçado quase me escapou da garganta. Por pouco não ri, por muito pouco, e somente porque permanecia ainda estarrecido... Vida de contrastes bestas! Não adiantava, não podia negar: talvez no fundo no fundo, mas bem lá no fundo mesmo, esses assaltantes de rua tenham em si uma criancinha louca para se lambuzar de sorvete.