segunda-feira, 25 de maio de 2015

A CAPITAL MAIS ACOLHEDORA DO MUNDO

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Aluno 50


As ruas de Porto Alegre nunca me pareceram muito convidativas, mas quando li no Zero Hora uma matéria a respeito do aniversário da “capital mais acolhedora do mundo” fui acometido por certo otimismo. E atesto a afirmação do jornal: anda-se pelas ruas, logo aparece alguém a fim de acolher celulares, carteiras, abraçar bem apertado as moças... Não existem limites pra esse tipo de amor.
De todas as vezes em que fui  acolhido pelo grande coração da cidade, uma em particular me faz rir quando torna à memória. Lembro que era uma tarde muito quente e de céu totalmente limpo. Eu voltava da universidade entre uma axila suada e um aglomerado de massa quase disforme que supostamente vestia algo tigrado – o calor que fazia dentro do ônibus não me permitiu definir. No ar pairava o bálsamo do povo trabalhador, eu mesmo contribuindo para tal com a camiseta ensopada.
Sair daquele forno foi um alívio. Senti-me tão tranquilo que nem parecia que andava na orla da Redenção, mas, desconfiado que sou, não deixei de atentar minha retaguarda de quando em quando. Todo meu redor estava vazio de gente.
Eis que surge muito provavelmente brotado da terra um homem às minhas costas, o qual só fui notar ao ter ele se anunciado.
– Passa carteira e celular.
Mesmo tendo me virado não pude assimilar o sujeito. Fiquei nervoso, a visão meio enegrecida. As únicas coisas que notei a princípio foram uma faca ou canivete que o homem segurava com o braço direito e uma tatuagem que não consegui identificar no mesmo braço.
Nem hesitei: tirei o celular e a carteira do bolso e os entreguei. Ele me deu um empurrãozinho nas costas e me mandou em direção contrária a que eu ia.
– Te manda, e não olha pra trás.
Foi o que fiz. Segui de cabeça baixa, com as pernas meio trêmulas e a visão ainda escurecida. Só ao recobrar totalmente os sentidos, de volta à parada de ônibus onde eu desembarcara, foi que me atrevi a olhar o sujeito que já estava longe, fazendo o mesmo caminho que eu ia fazer. Ele vestia boné e bermuda brancos, e uma camiseta preta e vermelha, listrada, com um número grande nas costas (provavelmente de algum time de futebol). As roupas eram batidas pelo que pude notar. Calçava chinelos.
Geralmente esse tipo de assalto é rápido. Só assimilei o que havia acontecido depois de me encontrar recobrado na parada. Ainda atormentado, desviei minha rota passando por dentro do campus do centro. O que se seguiu em mim foi uma onda de raiva e indignação. Tem que matar bandido mesmo. Descer a porrada nesses vagabundos. E cadê o policiamento? Queria poder chutar a cara do marginal (ele que nem tinha cara, só meu pé nela), chutar a polícia, os carros, o muro, a pedra. Senti raiva até do poste – e logo depois me senti um poste.
Estava sendo irracional. Negando todo o bom senso que possuía – eu, estudante privilegiado, com casa, comida e roupas, deveria no mínimo compreender a situação de quem não é favorecido como sou. Quais seriam seus motivos? E em seu passado o que se esconde? Não, decididamente agressividade não seria a solução. Ele era somente a consequência de uma sociedade doente. Antes um abraço que um soco...
Ou não. Bastou um passo para eu mudar de ideia novamente. E se acontecesse com as pessoas de quem gosto? Minha família, minha namorada... O que faria ele com minha namorada? Antes pudesse eu amassar o nariz do sujeito! Amassar a cara, chutar fundo no estômago. Se eu tivesse um tijolo...
Parei abruptamente. Todo esse fluxo inconstante de ideias e esse ódio insensato cederam lugar a um completo estarrecimento: na calçada do outro lado, pouco mais à frente e de costas para mim, estava o sujeito que me havia assaltado, na frente da lan house que faz esquina com a rua onde moro. As mesmas roupas e a tatuagem no braço direito – posso dizer que era alguma palavra, embora escrita em letras tão enfeitadas que não pude distinguir – tornavam o fato incontestável: era ele. Mas mais que isso, o que me causou enorme estranhamento, quase cômico, foi ver que na mesma mão que antes segurava a faca, segurava agora nada menos que um formoso sorvete de casquinha. Magnífico, enrolado. Com a mão esquerda o bandido guardava minha carteira no bolso de trás da bermuda – havia pago pelo sorvete. Pelos sorvetes na verdade, porque o sujeito da lan house , muito simpático, entregou ao assaltante mais um. Foi nesse dia inclusive que descobri que o local vendia sorvete de máquina.
Eu realmente não sabia se deveria correr. De todo modo, mesmo que tencionasse fazê-lo, não conseguiria. Minhas pernas não se moviam. Só observei o assaltante se afastar com sua atenção, para minha sorte, totalmente voltada aos sorvetes que segurava um em cada mão, os quais lambia ávido e guloso como uma criança. Observei-o até sumir de vista, imerso na multidão acolhedora. Talvez no fundo no fundo, mas bem lá no fundo mesmo, esses assaltantes de rua sejam somente uma criancinha querendo se lambuzar com sorvete.

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