1 Versão
Reescrita
Escrever de modo objetivo sobre si mesmo é uma tarefa difícil, posto que há sempre em nós, não importa o quanto tentemos nos desencobrir por completo, uma subjetividade muito sutil que nos individualiza. Obviamente não há forma concreta de firmarmos nossa existência senão em nós mesmos, contudo, atrevo-me a valer-me das palavras que ouvi já há algum tempo considerável: um amigo meu, suficientemente próximo para fazê-lo, disse que em apenas um dia consigo carregar em mim o potencial de um ano inteiro. De minha parte, discordar seria fechar os olhos para a razão – para as faces que sou.
Quando damos aquele tropeço abrupto e involuntário da infância para a mocidade, muita coisa fica para trás ao passo que tantas outras despencam em nossa cabeça. Foram as certezas que mais me fizeram falta, turvadas na poeira que levantei ao tropicar. Mas percebi que passar a vida em busca de respostas absolutas para tudo significa perdê-la absolutamente, e as incertezas que me tontearam foram tão logo abrindo espaços para pontos de vista tão diferentes que de súbito me vi entremeado por eles; acolhido e ao mesmo tempo violentado. Logo veio a consequência.
Ia mergulhando de pouco a pouco nas águas turvas destes pontos de vista e cada vez achava-me alguém novo. Desse modo, cheguei ao ponto de não me ver apto a apresentar-me de forma absoluta; tenho como característica regular a própria irregularidade. Passei pra além da inconstância própria de todo ser humano, de maneira que somente com ela sinto-me identificável. Pela mesma pessoa durante um dia posso ora nutrir o amor mais puro, ora – embora nunca o extremo ódio – uma irritação extremamente profunda e desgostosa. Posso dar um passo na calçada e me sentir leve e em harmonia com tudo em minha volta, alegre por fazer parte do meio em que estou, e no próximo passo sentir o peso do mundo contra meu pé e seguir me arrastando no dissabor de tudo aquilo que abomino em dado momento; ambos ou na tranquilidade ou na ânsia de passadas furiosas. É como se me equilibrasse em cima de um muro de inúmeros lados e somente os ventos do acaso determinassem para qual deles penderei. Essa é a melhor explicação que alguém poderá ter ao se perguntar o motivo de uma repentina arfada minha mediante uma conversa animada ou a razão pela qual ando cabisbaixo e soturno após ter, momentos antes, gargalhado por qualquer coisa.
Com tudo isso, compreendo o que se há de pensar: como ver identidade em alguém tão pouco inteiro e tão firmado na contradição? Mas também a luz do dia oscila; dá lugar às sombras noturnas e assim mesmo volta a brilhar, e assim mesmo é reconhecida. E se mudam as estações, haverei eu também de mudar constantemente, mesmo que de dia em dia, de hora em hora, pois sim, comprimo em mim o potencial de todo um ano. Disse Pessoa que “quem tem alma não tem calma”; e também eu não sei quantas almas tenho. Multifacetado que sou, não encontro firmeza e identidade senão na inconstância.
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