terça-feira, 28 de junho de 2016

Memórias sobre Brás Cubas

Aluno 110
Reescrita


            Machado de Assis é um nome conhecido por todos aqueles que possuem qualquer ínfimo contato com a leitura ou com a literatura brasileira, sendo não por poucos estudiosos considerado o maior escritor brasileiro de todos os tempos. Não é surpreendente, portanto, a ânsia que qualquer leitor possui em aventurar-se no universo machadiano através da leitura de alguma de suas obras mais famosas e descobrir por si mesmo as narrativas psicológicas tanto comentadas por todos.
            Entretanto, nem sempre o tempo está propício para navegações, e por vezes certas tempestades atrapalham a aventura. Meu primeiro contato com o autor, através de Memórias Póstumas de Brás Cubas, resultou num navio afundado, com uma leitura da qual não pude tirar qualquer proveito significativo. Me aventurei de tal modo aos 14 anos, depois de várias falas do meu pai, que acreditava que eu me interessaria pelo enredo e pelo narrador-defunto. A ânsia pela leitura, no entanto, durou pouco, e logo o livro tornou-se um fardo cada vez mais pesado e incompreensível, sendo o virar da última página apenas mais uma obrigação imposta que eu deveria cumprir.
            Ao analisar o contexto dessa primeira tentativa de leitura, logo percebo o quão importante foi a influência familiar (no caso, de meu pai) para que eu me interessasse inicialmente pela obra. Reconheço que, embora algumas atividades escolares já tivessem despertado minha curiosidade por Machado de Assis, o grande fator decisivo foi a indicação do meu pai, uma vez que ele levou em conta as leituras que haviam mais me agradado até a época. A importância do incentivo familiar frente ao papel da escola na formação de leitores é levantada por Rottava (2000), apesar de não ter sido suficiente para a criação do meu gosto pela obra, somente pelo interesse inicial.
            Rottava (2000) também traz outras questões importantes e perceptíveis no meu processo de leitura, uma delas sendo o contexto social no qual me encontrava juntamente com a minha relação individual com a obra. Considerando que "a leitura está ligada a diferentes propósitos do leitor que, por sua vez, estão ligados ao contexto situacional e às expectativas sociais" (Rottava, 2000), é fácil notar que meu propósito mesclou-se e confundiu-se entre a aprendizagem e o prazer, isto é, eu supus que a ânsia por conhecer a escrita do autor e a narrativa do livro automaticamente tornariam a leitura uma atividade deleitosa, o que não aconteceu. Não seria errôneo concluir até mesmo que tamanha expectativa por conhecimento teórico, que obrigatoriamente deveria ser prazeroso, fez com que o propósito desviasse-se daquele indicado pelo meu pai, que seria o interesse natural pelo enredo da obra.
            Numa análise sobre as práticas de leitura e escrita no ambiente escolar, Rottava (1995) atenta para o papel do leitor frente ao texto, que não pode ser considerado somente receptivo. A compreensão de um escrito depende, assim, de uma reconstrução da significação das orações, o que só pode ser possível quando é feita a relação às experiências anteriores do leitor, isto é, aos seus fatores sociais e culturais (Rottava, 1995). Eu, enquanto leitora do texto, automaticamente relacionei passagens a fatos do meu cotidiano, sem muitas vezes levar em conta o fato do livro ter sido escrito no século XIX e trazer personagens com hábitos da mesma época. Isso configura-se numa espécie de anacronia, pois ao tentar achar sentido a uma frase que referia-se a dado evento da época, acabava relacionando a algo atual. É importante analisar também o quanto a sociedade alterou-se desde o tempo da escrita do livro até hoje, e ao possuir conhecimentos históricos e sociais insuficientes, a leitura foi profundamente prejudicada.
            Tal questão da necessidade do conhecimento primário para possibilitar uma leitura suficiente foi trazida por Kleimam (1995), que divide-o em conhecimento linguístico, textual e de mundo. Ao ser incapaz de compreender certos hábitos da sociedade da época, tive falta do chamado conhecimento de mundo (ou enciclopédico), que prejudicou a leitura ainda mais quando ligado ao pouco que conhecia sobre a forma de escrita de Machado de Assis, muito caracterizada pela ironia e crítica social. Soma-se a isso também minha menor experiência de vida e visão de mundo, fazendo-me deitar sobre a obra um olhar mais inocente e até mesmo infantil. Como exemplo, há a personagem Marcela, primeiro amor de Brás Cubas, que é descrita como "amiga de dinheiro e de rapazes". Além disso, quando vai apresentá-la ao leitor, o autor hesita: "De todas porém a que me cativou logo foi uma... uma... não sei se digo; este livro é casto, ao menos na intenção", deixando claro que ela é uma prostitua. Apesar disso, na minha primeira leitura, esse fato não foi percebido dentre as várias passagens indiretas que remetem à realidade da mulher. Portanto, noto que certas críticas do autor foram incompreendidas quando lidas dessa vez, devido aos conhecimentos de mundo demasiadamente básicos sobre o assunto.
            Outro ponto crucial ao ler Memórias Póstuma de Brás Cubas pela primeira vez foi o choque com o palavreado antigo e a incompreensão resultante do uso de vocábulos desconhecidos. De acordo com Kleiman (1996), isso dá-se devido ao meu conhecimento linguístico insuficiente, uma vez que no meu "repertório" de palavras não há muitas que eram frequentes no final do século XIX. Ao desconhecer o significado de uma expressão, eu mantinha a leitura, tentando entender a oração através da relação de sentido entre outras palavras, mas por muitas vezes tal tática mostrou-se insuficiente para fazer-me compreender a construção e, ainda, interessar-me e preocupar-me com o contexto da obra, muito além de uma única frase. Um trecho, devido à falta de conhecimento linguístico, tornou-se quase que totalmente incompreensível: trata-se do capítulo XII, no qual um "glosador insigne, que acrescentou aos pratos de casa o acepipe das musas [...] pedia um mote, [..] e logo pedia outro e mais outro". Certamente não eram do meu conhecimento as palavras glosador (que, numa tentativa de ser relacionada ao meu cotidiano, tornou-se mais desconhecida e confusa ainda), insigne, acepipe e mote, tornando impossível o entendimento do contexto de um capítulo inteiro.
            Insatisfeita com uma leitura tão infrutífera quanto essa relatada, decidi, quase quatro anos depois, reler a obra. Na época, voltei com vários aliados a meu favor: um propósito de obter autoconhecimento e prazer; mais conhecimento de mundo sobre a história e sociedade da época de escrita da obra, bem como sobre a atual; uma bagagem de leitura muito maior e mais variada, incluindo outro textos do autor (através dos quais tive contato mais intenso com sua forma de escrita); um conhecimento teórico mais aprofundado sobre o autor, derivado de aulas de Literatura; e um dicionário como companheiro inseparável.
            Com essas ferramentas, a leitura fluiu de forma muito mais agradável e compreensível, uma vez que os acontecimentos conseguiram ser imaginados de forma mais concreta, seja devido a ativação de determinados conhecimentos de mundo ou à busca por expressões desconhecidas no dicionário, seguida de uma releitura calma e minuciosa de trechos considerados confusos ou dúbios. Ao concluir essa segunda leitura, a obra mostrou-se de modo completamente diferente; pude, finalmente, tirar proveito e compreendê-la de forma geral, apesar de ainda considerá-la uma obra de difícil compreensão, que requer atenção e esforço.
            É também interessante pensar em como essa segunda leitura preparou-me, de certo modo, para o contexto universitário: os textos acadêmicos, apesar de possuírem caráter informacional e deixarem a ficção de lado, possuem alguns dos aspectos que dificultaram a primeira tentativa de leitura, tais como palavreado desconhecido e a necessidade de grande conhecimento de mundo, no caso referentes ao assunto específico do texto. Pensando na experiência que tive com Machado de Assis, o percurso de leitura acadêmica torna-se menos assustador, uma vez que sei que o contato com cada um dos textos tornará o próximo mais familiar, compreensível e agradável.

Referências bibliográficas
ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Ática, 1992.
KLEIMAN, Angela. Texto e Leitor: Aspectos Cognitivos da Leitura. 4. ed. Campinas, SP: Pontes, 1995.
ROTTAVA, Lucia. A Leitura e a Escrita na Pesquisa e no Ensino. Espaços da Escola. Editora Unijuí, n. 27, p. 61-68, jan/mar. 98.
ROTTAVA, Lucia. A Importância da Leitura na Construção do Conhecimento. Espaços da Escola. Editora Unijuí, n. 35, p. 11-16, jan/mar. 2000.


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