quarta-feira, 29 de junho de 2016

Saramago me cegou

Aluno 68
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            Nossos hábitos de leitura constroem padrões em nossa interpretação. Quanto mais lemos um determino tipo de texto, mais habilidosos ficamos em identificar seus códigos, porém também corremos o risco de ficar limitados a ele. A variedade de leitura é essencial para construir uma interpretação de texto afiada e completa.  Quantos mais formatos diferentes de textos aprendemos a acompanhar, mais rico ficará nosso processo de compreensão e escrita de outros textos. Nesse sentido, a experiência com o estilo narrativo de José Saramago foi um desafio maravilhoso.
            Nós somos habituados a um formato de texto comum: parágrafos intermediários e lineares, orações comportadas, pontuação correta, nos diálogos em textos mais literários é comum o uso de travessão ou aspas para sinalizá-los. Existe toda uma organização estrutural que trabalha para facilitar a compreensão da história. Não vamos entrar em discussões sobre a validade ou não desse formato, o foco desse texto é a ruptura trazida por Saramago.
            Em seu romance “Ensaio Sobre a Cegueira” Saramago também parece querer tornar seu leitor cego. Não existem travessões ou aspas em seus diálogos, e eles seguem na mesma linha, muitas vezes na mesma oração, separados apenas por vírgulas, as mesmas que também separam conjunções e apostos. Seus parágrafos são enormes, e fluxos de consciência comumente se intercalam com descrições de cenário ou descrições psicológicas, sem nenhum padrão aparente. Dá para se dizer que o romance é uma bagunça, mas não dá para negar sua genialidade.
            Saramago leva seu leitor, também cego, desnudo da estabilidade organizacional do formato “normal” de romances, por um caminho tortuoso, sujo e desesperador. A bagunça desse texto é proposital, referencia a bagunça daquela sociedade fictícia. Não preciso discorrer sobre a história do romance para poder dizer o quão transformadora é a experiência de ler Saramago, seu estilo por si só é uma completa e nova viagem.
            Um leitor que entende e se apropria de José Saramago é um leitor que sai da zona de conforto, que fica mais apto a entender outros textos. É necessário transgredir o que conhecemos, sempre explorando novas experiências de leitura. Ler Saramago foi como ler cega, confiando completamente no escritor, e perceber, ao final do livro, o quanto é possível subverter magistralmente as regras quando se conhece muito bem seu funcionamento. O caos no estilo de Saramago não é caótico, é proposital, tem motivo, tem uma ordem e acrescenta à história. É muito importante se permitir ler o estranho, o difícil, e se apropriar das regras. Conhecer para poder subverter, se apropriar para poder criar e recriar. Ler como um cego me permitiu escrever com outros olhos.

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