quarta-feira, 29 de junho de 2016

Aluno 86
1 Versão


Lembro-me como se fosse ontem, lá pelos meus sete anos de idade após esgotar as linhas de todos os meus livros, fazia força com a mãozinha esticada, na ponta dos pés tentando alcançar na estante dos livros de meus irmãos, algum que fosse novidade para mim. Guardo até hoje a imagem da estante imensa na minha frente, pois precisava deitar a cabeça para trás para que fosse possível percorrer com os olhos os títulos dos mais variados assuntos. Na mesma época, andava interessada por mágicas depois de brincar com meu primo e seu “kit” que ensinava truques de magia. Então, eis que avisto o seguinte título “Abracadabra”, um livro amarelo e grande, porém não muito grosso. Curiosa, acreditando que se tratava de um livro sobre mágicas, arrastei um banquinho até lá para que pudesse alcançar a prateleira. Mal eu sabia os desafios que iria encontrar após tentar decifrar a primeira página.
            Com o “Abracadabra” em mãos, capa colorida, coelhinho saindo da cartola, tive certeza: vou aprender todos os truques que puder! Corro até o meu quarto, me jogo na cama e abro o livro para iniciar a leitura, quando de repente, percebo que nenhuma daquelas frases fazia o mínimo sentido pra mim. Decepção! Que palavras eram aquelas que terminavam com letras como o “t”? Aquilo era algo que eu nunca tinha visto antes, assim como aqueles “w” e “y” enfiados dentro de quase todas as palavras totalmente novas para mim. Durante alguns minutos fiquei frustrada, refletindo no quê eu havia deixado passar durante minha alfabetização que não era capaz de ler aquele texto diante de mim. Até então era quase impossível que eu não conseguisse ler qualquer palavra num letreiro, jornal, revista, rótulo, o que quer que fosse! Por mais que muitas vezes não compreendesse o significado e tivesse que consultar o dicionário, ao menos conseguia juntar as letras, formar sílabas e então, palavras. Exatamente o que eu não estava conseguindo naquele momento.
            Deixei o orgulho de lado e fui consultar minha mãe para descobrir o que estava acontecendo de errado. Ao mostrar o livro e contar sobre minhas angústias, ela me alivia, dizendo que aquele livro era do curso de inglês que minha irmã tinha começado há muitos anos atrás, mas nunca o terminado. Mais tranquila, descubro que se tratava de outra língua, e que era normal o fato de eu não conseguir decifrá-las com o conhecimento que eu tinha. Porém, aquela explicação não era o bastante, eu precisava aprender a ler aquela língua também! Infelizmente minha mãe não poderia me ajudar nessa questão, mas meu pai que chegaria do trabalho em poucas horas tinha conhecimento o suficiente para me ensinar aquelas novas palavras, seus significados e pronúncias. Obviamente, aquela foi a tarde mais demorada de todas, mas lá estava eu, com o Abracadabra em mãos quando escutei o barulho do motor do carro do meu pai apontando na rampa de casa.
            Surpreso com tamanho interesse da minha parte em aprender aquelas palavras, não hesitou em sentar no sofá comigo e o livro no colo e começou a me explicar os diferentes sons que aquelas letras produziam juntas sem nem mesmo tirar o uniforme depois de um longo dia de trabalho. Aos poucos, conhecendo melhor aquele novo alfabeto, algumas frases já faziam mais sentido e eu já conseguia sozinha ler diversas palavras daquele livro, agrupando os sons corretamente sem maiores dificuldades. Infelizmente ou felizmente, devido ao fracasso dos meus irmãos no único curso de inglês da cidade, cujas turmas não eram separadas por idade (o que trouxe para eles diversos problemas de socialização durante o curso acarretando na desistência dos mesmos), meus pais optaram por esperar até que eu tivesse mais idade e consequentemente um maior amadurecimento, para que eu ingressasse no curso.
            Devido a essa decisão tomada pelos meus pais baseada nas experiências negativas dos meus irmãos, me senti na obrigação de aprender sozinha a decifrar aqueles códigos para demonstrar que eu era diferente deles e independentemente dos obstáculos que eu poderia enfrentar, estava disposta a supera-los em razão do meu encantamento por aqueles novos sons diante de mim. E assim aprendi sozinha praticamente tudo o que sei de inglês até hoje. Gravava CD’s com as músicas dos clipes que eu assistia num canal da TV à cabo, imprimia as letras e passava tardes tentando acompanhar as pronúncias e consequentemente aprendendo as estruturas e conjugações verbais daquele idioma que me fascinava e fascina até hoje. Quando completei doze anos, finalmente fui para a escola de idiomas, onde constatei o que afirmei anteriormente: já havia aprendido sozinha tudo o que estavam tentando me ensinar ali. Durante os dois anos que estive lá, não houve praticamente nenhuma novidade, pelo menos para mim. Todas as minhas notas não baixavam de dez, e assim foram me trocando de turma, até que surgisse algo que eu não conhecesse. Estudando com alunos quase dez anos mais velhos que eu, não me sentia à vontade de abrir a boca para falar as bobagens que falava com meus antigos colegas e acabei desistindo do curso, 1, por não me trazer nada de novo e 2, por não me sentir confortável naquele ambiente com aquelas pessoas, porém nunca deixei o inglês de lado, tanto que é um dos maiores motivos de eu estar cursando Letras hoje: aprofundar meus conhecimentos na área.
            Hoje, analisando minha trajetória na aquisição de uma segunda língua, percebo as lacunas que de certo modo atrapalharam meu desenvolvimento num primeiro momento. A falta de um conhecimento prévio ao meu alcance com certeza foi um fator determinante tanto na compreensão de que se travava de uma outra língua, quanto no propósito pelo qual eu buscava uma nova leitura. Num primeiro momento, onde eu apenas buscava novos títulos para ocupar minhas tardes de leitura, acabo sendo atraída por um suposto livro de magicas que na verdade se mostra o ponto de partida para um novo propósito: aprender inglês. A partir daí, todas as minhas leituras em português perderam um pouco de espaço para que eu pudesse construir sentidos para aqueles novos agrupamentos de letras, assim podendo estabelecer um diálogo com aqueles textos. Afinal, considerando os estudos feitos por Lucia Rottava em 1998, ler é não só extrair e/ou atribuir sentidos de um texto, mas sim interagir com as palavras. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário