Aluno 86
1 Versão
Lembro-me como se fosse ontem, lá pelos meus sete anos de
idade após esgotar as linhas de todos os meus livros, fazia força com a
mãozinha esticada, na ponta dos pés tentando alcançar na estante dos livros de meus
irmãos, algum que fosse novidade para mim. Guardo até hoje a imagem da estante
imensa na minha frente, pois precisava deitar a cabeça para trás para que fosse
possível percorrer com os olhos os títulos dos mais variados assuntos. Na mesma
época, andava interessada por mágicas depois de brincar com meu primo e seu
“kit” que ensinava truques de magia. Então, eis que avisto o seguinte título
“Abracadabra”, um livro amarelo e grande, porém não muito grosso. Curiosa,
acreditando que se tratava de um livro sobre mágicas, arrastei um banquinho até
lá para que pudesse alcançar a prateleira. Mal eu sabia os desafios que iria
encontrar após tentar decifrar a primeira página.
Com o
“Abracadabra” em mãos, capa colorida, coelhinho saindo da cartola, tive
certeza: vou aprender todos os truques que puder! Corro até o meu quarto, me
jogo na cama e abro o livro para iniciar a leitura, quando de repente, percebo
que nenhuma daquelas frases fazia o mínimo sentido pra mim. Decepção! Que
palavras eram aquelas que terminavam com letras como o “t”? Aquilo era algo que
eu nunca tinha visto antes, assim como aqueles “w” e “y” enfiados dentro de
quase todas as palavras totalmente novas para mim. Durante alguns minutos
fiquei frustrada, refletindo no quê eu havia deixado passar durante minha
alfabetização que não era capaz de ler aquele texto diante de mim. Até então
era quase impossível que eu não conseguisse ler qualquer palavra num letreiro,
jornal, revista, rótulo, o que quer que fosse! Por mais que muitas vezes não
compreendesse o significado e tivesse que consultar o dicionário, ao menos
conseguia juntar as letras, formar sílabas e então, palavras. Exatamente o que
eu não estava conseguindo naquele momento.
Deixei o
orgulho de lado e fui consultar minha mãe para descobrir o que estava
acontecendo de errado. Ao mostrar o livro e contar sobre minhas angústias, ela
me alivia, dizendo que aquele livro era do curso de inglês que minha irmã tinha
começado há muitos anos atrás, mas nunca o terminado. Mais tranquila, descubro
que se tratava de outra língua, e que era normal o fato de eu não conseguir
decifrá-las com o conhecimento que eu tinha. Porém, aquela explicação não era o
bastante, eu precisava aprender a ler aquela língua também! Infelizmente minha
mãe não poderia me ajudar nessa questão, mas meu pai que chegaria do trabalho
em poucas horas tinha conhecimento o suficiente para me ensinar aquelas novas
palavras, seus significados e pronúncias. Obviamente, aquela foi a tarde mais
demorada de todas, mas lá estava eu, com o Abracadabra em mãos quando escutei o
barulho do motor do carro do meu pai apontando na rampa de casa.
Surpreso
com tamanho interesse da minha parte em aprender aquelas palavras, não hesitou
em sentar no sofá comigo e o livro no colo e começou a me explicar os
diferentes sons que aquelas letras produziam juntas sem nem mesmo tirar o
uniforme depois de um longo dia de trabalho. Aos poucos, conhecendo melhor
aquele novo alfabeto, algumas frases já faziam mais sentido e eu já conseguia
sozinha ler diversas palavras daquele livro, agrupando os sons corretamente sem
maiores dificuldades. Infelizmente ou felizmente, devido ao fracasso dos meus
irmãos no único curso de inglês da cidade, cujas turmas não eram separadas por
idade (o que trouxe para eles diversos problemas de socialização durante o
curso acarretando na desistência dos mesmos), meus pais optaram por esperar até
que eu tivesse mais idade e consequentemente um maior amadurecimento, para que
eu ingressasse no curso.
Devido a
essa decisão tomada pelos meus pais baseada nas experiências negativas dos meus
irmãos, me senti na obrigação de aprender sozinha a decifrar aqueles códigos
para demonstrar que eu era diferente deles e independentemente dos obstáculos
que eu poderia enfrentar, estava disposta a supera-los em razão do meu
encantamento por aqueles novos sons diante de mim. E assim aprendi sozinha
praticamente tudo o que sei de inglês até hoje. Gravava CD’s com as músicas dos
clipes que eu assistia num canal da TV à cabo, imprimia as letras e passava
tardes tentando acompanhar as pronúncias e consequentemente aprendendo as
estruturas e conjugações verbais daquele idioma que me fascinava e fascina até
hoje. Quando completei doze anos, finalmente fui para a escola de idiomas, onde
constatei o que afirmei anteriormente: já havia aprendido sozinha tudo o que
estavam tentando me ensinar ali. Durante os dois anos que estive lá, não houve
praticamente nenhuma novidade, pelo menos para mim. Todas as minhas notas não
baixavam de dez, e assim foram me trocando de turma, até que surgisse algo que
eu não conhecesse. Estudando com alunos quase dez anos mais velhos que eu, não
me sentia à vontade de abrir a boca para falar as bobagens que falava com meus
antigos colegas e acabei desistindo do curso, 1, por não me trazer nada de novo
e 2, por não me sentir confortável naquele ambiente com aquelas pessoas, porém
nunca deixei o inglês de lado, tanto que é um dos maiores motivos de eu estar
cursando Letras hoje: aprofundar meus conhecimentos na área.
Hoje,
analisando minha trajetória na aquisição de uma segunda língua, percebo as
lacunas que de certo modo atrapalharam meu desenvolvimento num primeiro
momento. A falta de um conhecimento prévio ao meu alcance com certeza foi um
fator determinante tanto na compreensão de que se travava de uma outra língua,
quanto no propósito pelo qual eu buscava uma nova leitura. Num primeiro
momento, onde eu apenas buscava novos títulos para ocupar minhas tardes de leitura,
acabo sendo atraída por um suposto livro de magicas que na verdade se mostra o
ponto de partida para um novo propósito: aprender inglês. A partir daí, todas
as minhas leituras em português perderam um pouco de espaço para que eu pudesse
construir sentidos para aqueles novos agrupamentos de letras, assim podendo
estabelecer um diálogo com aqueles textos. Afinal, considerando os estudos
feitos por Lucia Rottava em 1998, ler é não só extrair e/ou atribuir sentidos
de um texto, mas sim interagir com as palavras.
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