Aluno 68
Reescrita
Nossos hábitos de leitura constroem padrões em nossa interpretação. Quanto mais lemos um determino tipo de texto, mais habilidosos ficamos em identificar seus códigos, porém também corremos o risco de ficar limitados a ele. A variedade de leitura é essencial para construir uma interpretação de texto afiada e completa. Quantos mais formatos diferentes de textos aprendemos a acompanhar, mais rico ficará nosso processo de compreensão e escrita de outros textos. Nesse sentido, a experiência com o estilo narrativo de José Saramago foi um desafio maravilhoso.
Nós somos habituados a um formato específico de texto: parágrafos relativamente curtos e lineares, orações “comportadas”, que obedecem certas regras de pontuação e organização, e em textos mais literários é comum o uso de travessão ou aspas para sinalizar diálogos. Existe toda uma organização estrutural que trabalha para facilitar a compreensão da história. Não vamos entrar em discussões sobre a validade ou não desse formato, o foco desse texto é a ruptura trazida por Saramago.
Em seu romance “Ensaio Sobre a Cegueira” Saramago também parece querer tornar seu leitor cego. Não existem travessões ou aspas em seus diálogos, e eles seguem na mesma linha, muitas vezes na mesma oração, separados apenas por vírgulas, as mesmas que também separam conjunções e apostos. Seus parágrafos são enormes, e fluxos de consciência comumente se intercalam com descrições de cenário ou descrições psicológicas, sem nenhum padrão aparente. Dá para se dizer que o romance é uma bagunça, mas não dá para negar sua genialidade. O exemplo seguinte descreve o momento em que o primeiro personagem torna-se cego. Perceba ao longo do trecho o quanto as orações são compridas e cansativas, num clima rápido e intenso, e que mesmo regido por tanta “bagunça”, a descrição consegue fixar a atenção e expectativa do leitor. É quase possível “ouvir” o cenário que o texto descreve:
O sinal verde acendeu-se enfim, bruscamente os carros arrancaram, mas logo se notou que não tinham arrancado todos por igual. O primeiro da fila do meio está parado, deve haver ali um problema mecânico qualquer, o acelerador solto, a alavanca da caixa de velocidades que se encravou, ou uma avaria do sistema hidráulico, blocagem dos travões, falha do circuito eléctrico, se é que não se lhe acabou simplesmente a gasolina, não seria a primeira vez que se dava o caso. O novo ajuntamento de peões que está a formar-se nos passeios vê o condutor do automóvel imobilizado a esbracejar por trás do pára-brisas, enquanto os carros atrás dele buzinam frenéticos. Alguns condutores já saltaram para a rua, dispostos a empurrar o automóvel empanado para onde não fique a estorvar o trânsito, batem furiosamente nos vidros fechados, o homem que está lá dentro vira a cabeça para eles, a um lado, a outro, vê-se que grita qualquer coisa, pelos movimentos da boca percebe-se que repete uma palavra, uma não, duas, assim é realmente, consoante se vai ficar a saber quando alguém, enfim, conseguir abrir uma porta, Estou cego. (SARAMAGO, 1995, p.2)
Saramago leva seu leitor, também cego, desnudo da estabilidade organizacional do formato “normal” de romances, por um caminho tortuoso, sujo e desesperador. O caos no estilo de Saramago não é caótico, é proposital, tem motivo, tem uma ordem e acrescenta à história, a bagunça desse texto é proposital, referencia a bagunça daquela sociedade fictícia. Não preciso discorrer sobre a história do romance para poder dizer o quão transformadora é a experiência de ler Saramago, seu estilo por si só é uma completa e nova viagem.
Um leitor que entende e se apropria de José Saramago é um leitor que sai da zona de conforto, que fica mais apto a entender outros textos. É necessário transgredir o que conhecemos, sempre explorando novas experiências de leitura. Ler Saramago foi como ler cega, pois tive que me desapegar de todo o meu conhecimento linguístico prévio e segurar na mão de Saramago, atravessando um mundo sujo, angustiante e magistralmente construído. Cada oração comprida e cheia de vírgulas é como um momento de asfixia que compartilhamos com as personagens, e quando nos deparamos com um parágrafo enorme e sem travessões, não fazemos ideia do que virá pela frente, se alguma personagem terá voz, se o ambiente vai mudar. Saramago não apenas subverteu algumas regras, ele me cegou e me incluiu em sua história, e ler como um cego me permitiu escrever com outros olhos.
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