segunda-feira, 10 de julho de 2017

Nossas Mudanças

Reescrita
Aluno 141


Há alguns meses atrás, eu li um texto que definia a aprendizagem como todas as experiências capazes de causar mudança em uma pessoa. A experiência que me moldou mais profundamente não foi vivenciada na minha curta vida, mas décadas antes de meu nascimento. Ela me foi contada aos fins de tarde, depois dos longos dias de trabalho dos meus pais, em uma época em que eu ainda cabia no conforto de seus colos. Nos relatos, meu pai recordava de sua própria figura na época da juventude, momento em que a passagem de um único homem em sua vida lhe permitiu aprender a ensinar.   
Ele nasceu em Jaquirana, cidade da serra gaúcha repleta de araucárias. Logo nos primeiros anos de idade descobriu que era dessas árvores que tiraria o sustento para a sua família ao ganhar seu primeiro machado, proporcional as pequenas mãos da criança que mal havia formado cinco anos de idade. Se na escala mundial as grandes potências se confrontavam na Segunda Grande Guerra, na esfera da família de origem portuguesa a maior batalha era sobreviver às adversidades impostas pela realidade da vida no campo.  
Nessa realidade áspera, não existia espaço para lápis nas mãos ocupadas por enxadas. Depois de uma breve introdução às letras, suficiente somente para fins de alfabetização, a permanência na escola deixou de ser uma possibilidade e, por quatorze anos, os estudos desapareceram de sua vida. Entretanto, contrário à todas as adversidades, o homem que não havia posto os pés na escola nutriu o sonho de se tornar professor. Para mim, mulher nascida nos anos noventa e privilegiada com todas as inovações da virada do século, ter em minha família a história de uma pessoa que passou por tantas privações antes de atingir suas metas profissionais já teria sido um enorme aprendizado. Entretanto, pude aprender mais por meio de sua história do que a simples perseverança.       
Logo quando moço meu pai se tornou o responsável por sair em longas cavalgadas com seus irmãos ou primos homens em descidas pelas montanhas de Cambará do Sul em direção aos Moinhos de Vento, lugar onde poderia moer os grãos de cereais e conseguir alimentos refinados. Foi em uma dessas andanças que ele conheceu uma pessoa sobre a qual somente se refere como "Padre". Para mim, esse homem não tem nome, rosto ou trejeitos. Ele é somente um ser de grande gentileza que se solidarizou com a história de um menino da serra  e resolveu lhe oferecer uma oportunidade. Na época, o rapaz tinha cerca de quatorze anos. Rondava pela cidade de Caxias a informação de que uma bolsa para o colegial havia sido disponibilizada pelo governo federal. Contudo, somente poderia concorrer para o benefício quem tivesse frequentado as aulas das séries iniciais.
Ele sabia da importância da bolsa de estudos para tornar as suas aspirações realidade. Da mesma forma, o Padre também ficou sabendo de sua vontade de voltar a estudar. Como resultado, nasceu uma promessa entre os dois: se o jovem conseguisse estudar todas as matérias e passasse no concurso para ganhar a bolsa de estudos, o mais velho lhe daria o certificado de conclusão das séries iniciais.
Quaisquer possíveis descontentamentos que venha a ter com a minha rotina de estudos parecem se esvair quando eu penso nas dificuldades que ele deve ter enfrentado naquele ano que se seguiu a promessa entre os dois. No entanto, é curioso como esse período nunca faz parte de seus relatos sobre o acontecido. O nervosismo da prova, a ansiosidade pelos resultados finais e a burocracia para conseguir o atestado de conclusão são momentos acrescentados à experiência pela minha imaginação curiosa de filha. Porém, é bastante presente em mim a ideia de que, jutamente a vontade de mudar a sua história de vida, estava a vontade de retribuir a bondade de seu benfeitor por meio do êxito.
O Padre não precisava ter o acolhido. Contudo, ele teve a sensibilidade de ajudá-lo, mesmo em uma situação que poderia ser considerada juridicamente condenável. Por muitas vezes nos sentimos tão pequenos e insignificantes perante as outras pessoas, mas esse único ato de bondade demonstra como cada indivíduo é capaz de gerar um ciclo de mudança. Eu posso desconhecer o nome e o rosto desse homem, mas mesmo assim ele foi capaz de me mudar pelo mais singelo dos atos de generosidade.
No final das contas, o rapaz ganhou a bolsa, voltou a estudar e, anos depois, ingressou na faculdade para se tornar professor. Se ele não tivesse recebido esse auxílio, provavelmente ainda estaria tirando o seu sustento do campo, sem ter podido concretizar as suas aspirações. Já faz cerca de vinte anos que ele se afastou da docência pela aposentadoria por tempo de serviço. Mesmo assim, ao lembrar da generosidade daquela figura sem nome, seus olhos chegam a marejar por trás da carranca de homem que não chora. Eu, por outro lado, estou dando os meus primeiros passos para tornar uma professora assim como ele foi um dia. Por isso, posso afirmar com certeza que o ato daquele homem, bem como todas as mudanças que ele causou no curso de nossas vidas, contribuiu grandemente para eu me tornar quem sou.

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