Reescrita
Por Aluno 38
A minha decisão de cursar a graduação em Letras na UFRGS era-me um acontecimento improvável,já que o meu antigo objetivo maior, fazer faculdade de Ciência da Computação, tinha sido dogmatizado por mim, como se fosse uma ferrenha fé nalguma religião. Fazendo uma analogia com o futebol, o dia em que decidi trocar Informática por Letras pode ser comparado ao momento em que alguém deixa de torcer para o Internacional e passa a ser torcedor do Grêmio. São antagônicas a paixão por livros e a por computadores, como se fossem times de futebol rivais, ainda que nada impeça alguém de gostar destes e daqueles ao mesmo tempo. Mas, se eu tinha um grande desejo de trabalhar com a Tecnologia da Informação, porque, então, eu passei a amar a literatura e a língua portuguesa, traindo o meu antigo amor, a Informática? É evidente, meu amigo leitor, que esse adultério tem precedentes que fundamentaram minha decisão e constitui-se num longo processo, cerca de cinco anos. Seria um relato bastante inverossímil se eu dissesse que tal grande mudança aconteceu apenas no dia em que a oficializei. Convido todos os que me leem neste momento a conhecerem esse longa transformação.
Num passado não muito distante, mais precisamente no ano de 2007, conquistei um emprego de desenvolvedor de programas para computador, depois de eu ter feito um curso técnico em informática e um estágio em programação. Um trabalho que certamente muitos de vocês considerariam bom ou muito bom, uma vez que o salário era razoavelmente alto, cerca de três salários mínimos, e o plano de carreira, bastante promissor. Atualmente, se eu tivesse continuado nessa profissão, tendo em vista a minha competência em fazer programas para computadores, atestada por todos os meus antigos chefes, eu já poderia ter me tornado um analista de sistemas, que é quem planeja os sistemas computacionais e decide as tarefas a serem feitas neles pelos programadores. Em suma, eu estava encaminhado a ter uma vida, do ponto de vista financeiro, bastante estável. Em tese, não haveria nenhum motivo para eu querer mudar de profissão. Além de eu estar sendo bem remunerado, eu fazia algo que me agradava bastante. Eu não me imaginava trabalhando em outro ramo profissional, porque eu tinha como certa a minha permanência definitiva na área de TI.
Diante dessa certeza absoluta, eu decidi, então, prestar vestibular da UFRGS para Ciência da Computação. Aos meus 26 anos, em janeiro de 2009, eu fiz o meu primeiro vestibular. Por causa disso, alguns meses antes, em agosto de 2008, matriculei-me num curso pré-vestibular. Paradoxalmente, essa matrícula foi o acontecimento que iniciou minha fase de transição para o mundo das letras. Ao estudar para entrar na universidade, eu tive bastante contato com boa literatura, o que raramente acontecia na distante época do Ensino Médio, que foi concluído aos meus 18 anos. Durante muitos anos fazendo cursinho, lendo bons autores brasileiros e portugueses, a saber, Machado de Assis e José Saramago, eu tive a oportunidade de gradativamente mudar muitas das minhas conjeturas, sendo uma delas exatamente a minha certeza de que eu trabalharia pelo resto da minha desenvolvendo aplicativos para computador. Em "História do Cerco de Lisboa", de José Saramago, a personagem Raimundo Silva era revisor de livros aos 53 anos. Por causa dessa posição que ocupava na editora, ele sentia-se intelectualmente submisso aos autores cujos livros revisava. Apesar da elevada idade, ele teve coragem de enfrentar o medo da mudança, metaforicamente dizendo "não" a antiga vida dele (quando ele escreveu literalmente a palavra "não" numa afirmação de um livro que ele estava revisando, modificando o sentido da sentença). Com isso, ele tornou-se autor de sua própria vida e escritor de suas próprias obras, após ter sido desafiado a esta tarefa por Maria Sara, sua chefe, que acabou envolvendo-se amorosamente com Raimundo Silva. Essa obra literária, durante o meu lento processo de transformação, foi a que mais me influenciou na minha decisão de fazer Letras, haja vista que ela me mostrou não haver idade certa ou melhor para mudar. Mas, visto que a Informática era para mim como se fosse um forte dogma religioso, só a literatura não foi suficiente para romper a minha antiga realidade profissional. Em um certo momento, eu me apaixonei também por gramática da nossa língua, o que da mesma forma influenciou bastante a minha troca de curso universitário.
Além de eu vir do Ensino Médio com pouquíssima bagagem literária, eu também era terrivelmente péssimo em Gramática. Eu mal conseguia distinguir o sujeito do predicado. Embora a Matemática seja uma das matérias escolares mais abstratas, eu via muito mais concretude em números do que em regras gramaticais, porque eu enxergava utilidades práticas em fazer cálculos, mas não, em entender, por exemplo, o que é uma oração subordinada substantiva subjetiva (hoje eu entendo essa oração, assim como todas as suas primas e irmãs...). Eu nem mesmo via razões suficientes para se estudar gramática, uma vez que eu pensava não ser necessário saber o que é oração, frase, sujeito, predicado, objetos e adjuntos para se escrever bem. Por isso, na minha vida escolar durante o Ensino Médio, eu adorava Matemática e detestava
Português: eu era o "cara das exatas". Aliás, foi essa facilidade para Matemática no Ensino Médio que deu origem à minha inclinação pela Informática alguns anos depois de concluí-lo, já que as duas são áreas afins. Então, como foi possível eu passar gostar também de Português, mesmo tendo maior aptidão para fazer cálculos e para lidar com algoritmos computacionais? Ora, de acordo com o nosso sapientíssimo senso comum, quem tem muita facilidade nas áreas exatas jamais vai tê-la nas humanas. Mas, como eu não sou nada comum, convencional e versado em máximas populares, eu decidi enfrentar o desafio: entender as regras gramaticais e dominá-las. Por isso, em agosto de 2012, após já ter sido reprovado em quatro vestibulares para Ciência da Computação, procurei um curso de Português para concursos públicos, pois obtive a informação de que os professores desse segmento eram muito bons, devido ao alto nível de exigência de gramática em concursos. Nesse ínterim, entrou em cena um espetacular professor de Português, que mudou definitivamente a opinião que eu tinha sobre essa disciplina escolar.
"Como assim, como assim, não entendi!". Esse era um dos bordões do grande e inesquecível professor, que, não só me fez entender Gramática, como também me ensinou a raciociná-la. Isso significa que eu passei a ter muita facilidade para, por exemplo, fazer a análise sintática de qualquer frase, raramente precisando recorrer a "macetes", artifícios que ensinam pouco e apenas servem para marcarmos com um "X" a resposta certa nas provas. O professor mostrou que a Gramática não é subjetiva e complicada, conforme eu pensava antes, mas sim tão lógica e simples quanto a Matemática. Ele mostrou que na nossa língua as regras têm uma razão de ser ou de não ser, bem como suas exceções, mesmo que existam as variações linguísticas ao longo dos tempos. Dessa forma, eu passei não só a entender, mas a gostar bastante
de Português. Desde criança, em se tratando de aprendizado escolar, eu primeiro preciso entender uma matéria para depois gostar dela. Posto que o professor lecionasse Português para concursos públicos, os conhecimentos transmitidos por ele serviriam também para eu tirar uma boa nota no vestibular. E foi exatamente isso que aconteceu. No primeiro vestibular que eu fiz após o curso de Português, o quinto para Ciência da Computação, prova que realizei em janeiro de 2013, eu saltei de 6 acertos para 14 em Português e de 18 pontos para 22 em Redação: um aumento de desempenho espetacular e sem precedentes
que, particularmente em relação à Redação, desbancou as minhas antigas teorias sobre a necessidade de regras gramaticais para se escrever bem. A Gramática não é tudo o que se precisa para se redigir com qualidade, mas tem grande importância nesse ofício, uma vez que ela ajuda bastante na organização de um texto e das ideias que se pretendem expor nele. Mesmo com essa grande evolução em Gramática, faltou 4 apenas um ponto no vestibular de 2013 para eu conquistar a tão sonhada graduação em Ciência da Computação. A sensação de não ser aprovado por tão pouca pontuação é terrível, angustiante, triste, sofrida e desesperadora. Pior do que isso, só mesmo as doenças ou a morte. Entretanto, hoje, eu seria capaz de comemorar com fogos de artifício essa derrota. Se eu tivesse sido aprovado, dificilmente eu teria me dado conta de que a programação de softwares já não era mais o meu norte, pois eu permaneceria em meio aos computadores e abandonaria a leitura frequente de bons livros literários. Eu ainda não tinha percebido que a paixão por Literatura, por Gramática e por Redação já eram mais fortes do que a por Informática e por Matemática. Alguns meses depois da minha reprovação no vestibular de 2013, meu melhor amigo, que atualmente é estudante de História na UFRGS, aconselhou-me a fazer vestibular para Letras, fazendo eu perceber finalmente o engano ao qual eu estava me submetendo.
O dia em que meu melhor amigo me deu o conselho foi o mesmo em que eu tomei a decisão de prestar vestibular para Letras. Ele me fez perceber o equívoco que eu estava cometendo. Segundo ele, eu estava desperdiçando minhas capacidades literárias, redacionais e gramaticais ao restringir-me ao mundo da cibernética. Ele disse também que o mundo das letras é a minha diversão, e concluiu dizendo que eu deveria pensar com carinho em fazer Letras, para o bem da nação e da humanidade. Exageros à parte, ele foi bastante convincente em seu argumento, pois ele conseguiu me provar que eu não gostava tanto de Informática como eu imaginava, e que eu seria muito mais feliz e produtivo atuando nas minhas verdadeiras paixões: ler, escrever e gramaticar. Depois dessa conversa, sozinho fiz uma longa reflexão, cerca de uma hora e meia. Chamo-a longa, leitor, não pela sua duração, mas porque nela se passou todo (eu disse todo) o longo período de cinco anos de preparação para o vestibular, como se fosse um filme rodando em alta velocidade. Não estou exagerando: segundo a ciência, nosso cérebro possui muitos mistérios... Ficou muito claro para mim, como se fosse uma fotografia em dia de sol, que números, teoremas e computadores têm a ensinar, do ponto de vista existencial, muito menos que autores consagrados da Literatura. Quando lemos um bom livro, podemos, além de exercitar a nossa imaginação, adquirir novas conjeturas de vida e reformular as que já tínhamos. Isso não é possível quando resolvemos uma equação numérica de segundo grau ou quando desenvolvemos um novo editor de textos para computadores. O conhecimento da área das exatas é bastante útil, mas o é apenas para áreas bem específicas; não, para conhecimentos vivenciais, que são bem mais amplos. O dia da grande mudança, 23 de maio de 2013, eu costumo chamar de "O Dia L". O "L" significa "Letras". Já fazia cerca de um ano que eu não trabalhava mais como "garoto de programa", profissão que jocosamente alguns amigos me atribuíam. Nesse dia eu decidi definitivamente não mais procurar um emprego em que eu continuasse a fazer programas de computador. Tomei a decisão de iniciar a minha preparação para o vestibular em Letras. Cerca de dois meses depois desse dia, eu consegui o meu primeiro emprego na área de Letras. Esse trabalho, que me foi dado por outro grande professor de Português, consiste em pesquisar na internet provas de Português para concursos públicos, em separar as questões dessas provas por assunto, em elaborar frases para serem usadas em apostilas de gramática e em trabalhar com redações. Alguns meses antes do vestibular da UFRGS de 2014, também dei aulas particulares de Gramática para colegas de curso pré-vestibular. Era a minha carreira em Letras já alçando modestos voos mesmo antes de eu iniciar a graduação. Esse sucesso inicial com as letras me dava ainda mais certeza da minha decisão. Já que o ano de 2013 foi minha época de rompimento de antigos paradigmas, eu também mudei de curso pré-vestibular dois meses antes da prova, porque a apostila do cursinho possuía bastantes erros de gabarito remanescentes de 2008. De modo muito diferente do antigo, além da apostila impecável, o novo cursinho me deu ótimas contribuições nos meus preparativos para o vestibular de 2014, sobretudo, em História e em Química. As minhas maiores notas na prova da UFRGS de 2014 são apenas um 5 reflexo da minha evolução nas áreas em que eu pretendo trabalhar pelo resto da minha vida: 22 em Literatura, 22 em Redação e 20 em Português. No dia em que eu vi o meu nome na lista de aprovados, conquanto eu tenha sentido uma imensa alegria, eu senti também que, se eu tivesse tido um melhor autoconhecimento, eu poderia ter evitado tantos anos vivendo o sonho de outras pessoas. Foi apenas uma sensação passageira, pois não faz sentido lamentarmos as derrotas anteriores à vitória. Muito pelo contrário, devemos tirar ensinamentos delas.
Quando eu ingressei no curso de Licenciatura em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, eu tinha 31 anos e ainda tenho essa idade. Atualmente, estou no primeiro semestre dessa graduação. No meu curso Letras na UFRGS, estou estudando as matérias das quais já gostava e outras que eu ainda não conhecia, como, por exemplo, Sociologia da Educação e Linguística. Certamente, todas elas agregarão maior qualidade ao meu trabalho na área de Letras que eu já desenvolvia meses antes de eu ser aprovado no vestibular de 2014 e aos que eu conseguir futuramente. Estou vivendo o meu melhor momento, tendo em vista que estou obtendo os resultados da coragem que eu tive para operar uma mudança tão radical na minha vida, que foi a de fazer vestibular para uma área muito diferente da que eu vinha trabalhando por muitos anos. Ainda bem que pude ter mais contato com boa literatura e conhecer um grande professor de Português que me fez gostar muito dessa matéria. Muito felizmente, tenho um melhor amigo que para mim vale muito mais do que um baú cheio de ouro: ele é a quintessência da amizade. Ele soube perceber melhor do que eu a mudança que eu tinha de fazer para me sentir mais feliz e realizado profissionalmente. Esses são os fatores fundamentais para eu ter trocado Ciência da Computação por Letras. Consoante disse José Saramago em seu livro "História do Cerco de Lisboa": "Sempre chega o dia em que é preciso corrigir mais no fundo".
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