domingo, 27 de abril de 2014

Um tanto mais sobre aquele

    Reescrita
Por Aluno 35


             Pega um café e vem aqui. Tem açúcar na gaveta. Não, não vou querer café. Pega o teu e vem aqui fora. Tenho uma coisa para te mostrar.
            Olha ali, bem ali, naquela sala aqui na frente. O garoto loiro, meio alto, aquele que está com a folha na mão lendo alguma coisa. Aquele que todo mundo presta a atenção. Aquele. Nícolas. Com acento no i. Proparoxítona, isso mesmo. Nícolas Nardi: o aspirante a engenheiro mais fracassado da história. Senta cara, senta logo, não fica de pé que me dá agonia. Senta que eu te conto o resto.
            Técnico em química, fez estágio na Braskem, no polo petroquímico, tinha tudo para continuar por lá, seguir com uma engenharia e ser um homem rico, mas não. Essa aula que ele está não é da engenharia. O prédio é o da Letras, sim, Letras. De uma possível engenharia, o garoto foi pra Letras. Eu matava, juro que matava, se eu tivesse um filho assim.
            Não deu, diz ele que não deu pra seguir na química. Não tinha mais afinidade. Foi só um caso. Desses amores de verão. Que duram o pouco tempo que tem que durar e depois se deixa pra lá. Às vezes o santo não bate mesmo, depois que começou a devorar livros, nem queria mais saber de química.
            Já tem dezenove, dezenove quase vinte. Um mês e deu. Vinte anos na cara e talvez comece a crescer a barda. Talvez com a barba ele crie mais responsabilidade. Talvez desista até dessa idéia de ser professor. Falaram que os pêlos no rosto viriam aos dezesseis, dezessete, já são quase vinte e nada. Coitado. Nem barba tem. Isso é castigo. Só pode ser castigo. Desistiu da engenharia e achou que ia ficar por isso mesmo. Olha ai, esse rosto sem barba, a vida sabe se vingar.
            Dentro da mochila o guri carrega um caderno pra escrever poesia. Diz que até que ser poeta. Viver da escrita. Ainda acha que vai conseguir. Ganhar até mais que com o diploma de engenharia. Não que o garoto não pudesse ser engenheiro e escritor, simultaneamente, mas o coitado não nasceu para as exatas. Ele acha que alguém vai comprar os poemas dele. Nesse país que ninguém lê. Ele acha que vai ser famoso. Deixa o menino sonhar, deixa, eu que não vou falar nada. Eu não. Deixa que alguém fale. Até se tu quiser falar, fica à vontade.
            E os livros, toda hora, um atrás do outro. Que livro da universidade. Nada disso. Ainda não. Ele acha que está de férias ainda. Coitado, deixa chegar a prova, quero só ver. Ele diz que logo vai começar a ler tudo, vai compensar o tempo perdido. Quero só ver. A Odisseia que devia estar na mochila, não está. Tem outro livro ali. Não, nenhum professor pediu pra ele ler o livro que ele esconde na mochila. Só que falta repetir alguma matéria. Pela amor de Deus, é Letras, se fosse algo como cálculo, mas por favor, não deve ter nada na Letras difícil assim, juro que se fosse cálculo eu entenderia, mas não é.

            Faz silêncio que dá até pra escutar ele lendo. Escuta ai. Ouve a voz do guri. Quieto. Escuta ele ali. Lendo o texto na aula. Escuta isso. Escuta até quando ele faz silêncio. 

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