Reescrita
Por Aluno 35
Pega um café e vem aqui. Tem açúcar
na gaveta. Não, não vou querer café. Pega o teu e vem
aqui fora. Tenho uma coisa para te mostrar.
Olha ali, bem ali, naquela sala aqui
na frente. O garoto loiro, meio alto, aquele que está com a folha na mão lendo
alguma coisa. Aquele que todo mundo presta a atenção. Aquele. Nícolas. Com
acento no i. Proparoxítona, isso mesmo. Nícolas Nardi: o aspirante a engenheiro
mais fracassado da história. Senta cara, senta logo, não fica de pé que me dá
agonia. Senta que eu te conto o resto.
Técnico em química, fez estágio na
Braskem, no polo petroquímico, tinha tudo para continuar por lá, seguir com uma
engenharia e ser um homem rico, mas não. Essa aula que ele está não é da
engenharia. O prédio é o da Letras, sim, Letras. De uma possível engenharia, o
garoto foi pra Letras. Eu matava, juro que matava, se eu tivesse um filho
assim.
Não deu, diz ele que não deu pra
seguir na química. Não tinha mais afinidade. Foi só um caso. Desses amores de
verão. Que duram o pouco tempo que tem que durar e depois se deixa pra lá. Às
vezes o santo não bate mesmo, depois que começou a devorar livros, nem queria
mais saber de química.
Já tem dezenove, dezenove quase
vinte. Um mês e deu. Vinte anos na cara e talvez comece a crescer a barda.
Talvez com a barba ele crie mais responsabilidade. Talvez desista até dessa
idéia de ser professor. Falaram que os pêlos no rosto viriam aos dezesseis,
dezessete, já são quase vinte e nada. Coitado. Nem barba tem. Isso é castigo.
Só pode ser castigo. Desistiu da engenharia e achou que ia ficar por isso
mesmo. Olha ai, esse rosto sem barba, a vida sabe se vingar.
Dentro da mochila o guri carrega um
caderno pra escrever poesia. Diz que até que ser poeta. Viver da escrita. Ainda
acha que vai conseguir. Ganhar até mais que com o diploma de engenharia. Não
que o garoto não pudesse ser engenheiro e escritor, simultaneamente, mas o
coitado não nasceu para as exatas. Ele acha que alguém vai comprar os poemas
dele. Nesse país que ninguém lê. Ele acha que vai ser famoso. Deixa o menino
sonhar, deixa, eu que não vou falar nada. Eu não. Deixa que alguém fale. Até se
tu quiser falar, fica à vontade.
E os livros, toda hora, um atrás do
outro. Que livro da universidade. Nada disso. Ainda não. Ele acha que está de
férias ainda. Coitado, deixa chegar a prova, quero só ver. Ele diz que logo vai
começar a ler tudo, vai compensar o tempo perdido. Quero só ver. A Odisseia que
devia estar na mochila, não está. Tem outro livro ali. Não, nenhum professor
pediu pra ele ler o livro que ele esconde na mochila. Só que falta repetir
alguma matéria. Pela amor de Deus, é Letras, se fosse algo como cálculo, mas
por favor, não deve ter nada na Letras difícil assim, juro que se fosse cálculo
eu entenderia, mas não é.
Faz silêncio que dá até pra escutar
ele lendo. Escuta ai. Ouve a voz do guri. Quieto. Escuta ele ali. Lendo o texto
na aula. Escuta isso. Escuta até quando ele faz silêncio.
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