Aluno 110
1 Versão
Quando eu era criança, na rua onde eu morava existia um
terreno que me assombrava: exatamente duas casas ao lado da minha, havia alguns
pedaços velhos e corroídos de madeira, que alguns ousavam chamar de casa. Lá
não morava mais ninguém além dos meus medos, que por vezes eram visitados pelos
medos das outras crianças da rua, principalmente pelos da Gabriela, minha
vizinha.
Apesar de grande, o terreno continha uma casa pequena:
provavelmente um quarto, uma sala, uma cozinha e um banheiro formaram, outrora,
todo o ambiente. Sempre houve também uma grama enorme ao redor de toda a construção, impedindo
sua entrada, além de um portão de quase 3 metros (deduzimos que seria aproximadamente a soma da minha
altura com a de Gabriela) que, enferrujado, eu nunca havia visto aberto. Mas o
que mais chamava minha atenção, assim como a da minha amiga,
era que ninguém vivera tempo suficiente no bairro para saber a quem havia
pertencido a casa, e não demorou muito para que concluíssemos, com a
certeza mais absoluta que duas meninas podem ter, que ela era
assombrada por quem quer que tivesse sido seu dono. A partir
daí, virou nosso hobbie passar na frente da casa, inventando histórias sobre ela e
imaginando como ela havia sido um dia – e também há quanto tempo esse dia
deixara de existir. Nossas criações passavam desde princesas que foram abusadas por
suas madrastas até bruxas que viraram gatos e ali ainda
continuavam.
Com 12 anos, no entanto, eu me mudei e as histórias
acabaram; aos poucos, fui esquecendo da existência da casa e encontrei outros
passatempos para entreter minha mente. Apesar disso, frequentemente eu e
Gabriela visitávamos uma a outra para não perdemos nossos laços de amizade, e
isso perdurou até nossos 15 anos. Sempre que eu ia até sua casa, eu tinha que
passar pelo terreno abandonado, e ele nunca deixou de me intrigar, mesmo eu já
tendo consciência de que ali não havia nenhuma bruxa em forma de gato. Eu, por
vezes, ainda perguntava para alguém das redondezas se sabia a quem pertencera a
casa, mas a resposta era sempre a mesma, e eu acabei deixando de lado.
Num dia em que eu ia até a casa da Gabriela, entretanto,
algo de diferente aconteceu: havia uma barulheira incomum naquela rua, e eu percebi
que havia um daqueles tratores que são usados para demolir casas perto da
minha antiga moradia. Assim que fui chegando mais perto, percebi mais com o
raciocínio do que com os olhos que a única casa dali que poderia estar prestes a
virar entulho era aquela que eu tanto julgara assombrada, pois estava ocupando
um espaço que poderia servir para uma nova moradia, de fato. Eu lembro de ter
atravessado a rua, olhado uma vez em direção à casa e seguido até a de
Gabriela. Era uma sensação estranha ver minha brincadeira preferida de criança
ser destruída assim, sem consulta ou dó. Era como se meu lado infantil fosse
também destruído, arrancado de mim.
Acontece que eu e Gabriela não éramos mais crianças, e nem
discutimos sobre o acontecimento; seguimos a vida e contamos os relatos dos
últimos dias sobre a escola e o dia-a-dia, como sempre fazíamos. Não houve nada
que mereça aqui ser contado. E eu fui embora, como de costume, a pé, caminhando
até a parada de ônibus mais próxima, observando que já eram quase 17 horas.
Atravessei a rua de novo, pois era impossível passar na calçada da casa que
estava sendo demolida, mas dessa vez eu ousei olhá-la, como uma espécie de
adeus. Restava pouquíssimo do que outrora existira, e eu olhei para o container
que ali na frente estava, juntando os pedaços da história de alguém que eu
nunca saberia quem foi. E foi nesse gesto, de baixar os olhos para a caçamba,
que eu vi algo que não era a simples madeira que constituía as paredes
da casa: havia algo acima de todo o entulho que parecia um livro.
Eu lembro de ter ficado um instante quieta, analisando se
não era uma alucinação minha. Realmente havia algo lá? Mas eu percebi que o
caminhão que juntava as coisas do container estava ligando novamente, ou seja,
logo recolheria tudo, inclusive aquele livro. Eu atravessei a rua correndo, sem
olhar para os lados, e recolhi o objeto com uma ânsia de criança, ou talvez de
amante: peguei-o, ouvindo que os responsáveis pela obra cochichavam e me
olhavam torto, mas segui apalpando minha nova descoberta, analisando-a. Logo vi
que não era um livro, mas sim um caderno pequeno, daqueles de bolso, sem
espiral e, apesar de velho, bem conservado. Admito que tive uma intensa vontade
de sentar no chão ali mesmo e descobrir se aquelas páginas poderiam me dizer
algo sobre o morador daquela casa, mas resolvi seguir caminho e dedicar meu
tempo a ele somente quando acomodada no ônibus. Também admito que a ideia de ir
até a casa de Gabriela mostrar-lhe meu achado nem passou pela minha cabeça,
pois sentiria muito inveja de compartilhá-lo com alguém. Então eu segui, nunca
tendo desejado tão veemente que meu ônibus chegasse logo.
Quando sentei na última poltrona perto da janela, peguei o
caderno da bolsa e toquei-o com cuidado. Parece ridículo o amor que tive por um mísero
caderno antigo quando falo dessa forma, mas é a mais pura verdade. Eu abri-o
com tamanha lentidão e carinho que minha ação seria passível de risos.
Na primeira página, havia no topo escrita a palavra
"delírio", com uma letra muito trabalhada, e a qual eu invejei
instantaneamente. Logo abaixo desse título, havia um ponto de interrogação
entre parênteses, tudo escrito em tinta azul. Vi o que mais tarde eu
classificaria como poema, constituído de quatro estrofes, as duas primeiras com
quatro versos e as duas últimas com três. No fim da página estava
escrito "A Leda, com beijos da Ada". Datava de 1942. Na segunda
página havia outro poema, escrito em outra caligrafia,
que ocupava toda a folha. Ao virá-la, encontrei a dedicatória
"A minha querida colega Leda, com afeição da Laida". Também de 1942.
Ao longo das páginas passadas, eu fui entendendo que aquele
era o caderno da Leda, e que vários de seus amigos, colegas e companheiros
escreviam ali seus poemas como forma de lembrança. Eu não consegui ler todos durante
a viagem de ônibus, visto que quase completavam o caderno, mas a primeira coisa que fiz quando
cheguei em casa foi absorver todos aqueles poemas através da leitura. A próxima
coisa que fiz, quando virei a última página escrita, foi chorar. Agora, analisando
meu ato da época, não entendo direito o motivo do choro. Não foi por tristeza,
mas também não por alegria. Acho que meus sentimentos transbordaram pelos
olhos, como comumente se diz. Aquelas palavras, de variados donos, me tocaram de uma
forma tão intensa, que eu não soube mais o que fazer. Eu, que na época nunca
havia ousado escrever uma poesia (apesar de já ter escritos outros gêneros textuais como
forma de expressão) me vi na necessidade de conseguir me expressar tão
genuinamente como as pessoas que escreveram aqueles poemas. Mesmo mais de 70
anos depois eu conseguia me identificar com eles, e me emocionar com eles. Eu
queria mais do que tudo ser capaz de fazer algo tão significativo quanto
aqueles poemas. E foi o que eu comecei a fazer: aprendi, ao longo dos próximos
dias, meses, anos, a transformar a escrita numa forma singela de expressão,
para aliviar meus pesares, tocar o próximo mas, mais do que tudo, para
eternizar sentimentos e momentos.
Hoje eu posso não saber com certeza se a Leda era a dona
daquela casa, e mesmo que fosse, posso não saber a fundo quem ela era, nem qual
foi a sua história. Mas ela mudou minha forma de expressão e, consequentemente,
minha forma de ver o mundo, e tudo isso por um mero acaso. Hoje, mesmo três
anos depois de ter encontrado os registros que a Leda reuniu, eu lembro de
quase todos que para ela escreveram, e ainda tenho seus poemas como livro de
cabeceira. E hoje eu tenho meu próprio caderno que talvez, num futuro distante,
também seja resgatado por alguém.
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