terça-feira, 21 de junho de 2016

O acaso da casa

Aluno 110
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Quando eu era criança, na rua onde eu morava existia um terreno que me assombrava: exatamente duas casas ao lado da minha, havia alguns pedaços velhos e corroídos de madeira, que alguns ousavam chamar de casa. Lá não morava mais ninguém além dos meus medos, que por vezes eram visitados pelos medos das outras crianças da rua, principalmente pelos da Gabriela, minha vizinha. 
Apesar de grande, o terreno continha uma casa pequena: provavelmente um quarto, uma sala, uma cozinha e um banheiro formaram, outrora, todo o ambiente. Sempre houve também uma grama enorme ao redor de toda a construção, impedindo sua entrada, além de um portão de quase 3 metros (deduzimos que seria aproximadamente a soma da minha altura com a de Gabriela) que, enferrujado, eu nunca havia visto aberto. Mas o que mais chamava minha atenção, assim como a da minha amiga, era que ninguém vivera tempo suficiente no bairro para saber a quem havia pertencido a casa, e não demorou muito para que concluíssemos, com a certeza mais absoluta que duas meninas podem ter, que ela era assombrada por quem quer que tivesse sido seu dono. A partir daí, virou nosso hobbie passar na frente da casa, inventando histórias sobre ela e imaginando como ela havia sido um dia – e também há quanto tempo esse dia deixara de existir. Nossas criações passavam desde princesas que foram abusadas por suas madrastas até bruxas que viraram gatos e ali ainda continuavam. 
Com 12 anos, no entanto, eu me mudei e as histórias acabaram; aos poucos, fui esquecendo da existência da casa e encontrei outros passatempos para entreter minha mente. Apesar disso, frequentemente eu e Gabriela visitávamos uma a outra para não perdemos nossos laços de amizade, e isso perdurou até nossos 15 anos. Sempre que eu ia até sua casa, eu tinha que passar pelo terreno abandonado, e ele nunca deixou de me intrigar, mesmo eu já tendo consciência de que ali não havia nenhuma bruxa em forma de gato. Eu, por vezes, ainda perguntava para alguém das redondezas se sabia a quem pertencera a casa, mas a resposta era sempre a mesma, e eu acabei deixando de lado. 
Num dia em que eu ia até a casa da Gabriela, entretanto, algo de diferente aconteceu: havia uma barulheira incomum naquela rua, e eu percebi que havia um daqueles tratores que são usados para demolir casas perto da minha antiga moradia. Assim que fui chegando mais perto, percebi mais com o raciocínio do que com os olhos que a única casa dali que poderia estar prestes a virar entulho era aquela que eu tanto julgara assombrada, pois estava ocupando um espaço que poderia servir para uma nova moradia, de fato. Eu lembro de ter atravessado a rua, olhado uma vez em direção à casa e seguido até a de Gabriela. Era uma sensação estranha ver minha brincadeira preferida de criança ser destruída assim, sem consulta ou dó. Era como se meu lado infantil fosse também destruído, arrancado de mim. 
Acontece que eu e Gabriela não éramos mais crianças, e nem discutimos sobre o acontecimento; seguimos a vida e contamos os relatos dos últimos dias sobre a escola e o dia-a-dia, como sempre fazíamos. Não houve nada que mereça aqui ser contado. E eu fui embora, como de costume, a pé, caminhando até a parada de ônibus mais próxima, observando que já eram quase 17 horas. Atravessei a rua de novo, pois era impossível passar na calçada da casa que estava sendo demolida, mas dessa vez eu ousei olhá-la, como uma espécie de adeus. Restava pouquíssimo do que outrora existira, e eu olhei para o container que ali na frente estava, juntando os pedaços da história de alguém que eu nunca saberia quem foi. E foi nesse gesto, de baixar os olhos para a caçamba, que eu vi algo que não era a simples madeira que constituía as paredes da casa: havia algo acima de todo o entulho que parecia um livro. 
Eu lembro de ter ficado um instante quieta, analisando se não era uma alucinação minha. Realmente havia algo lá? Mas eu percebi que o caminhão que juntava as coisas do container estava ligando novamente, ou seja, logo recolheria tudo, inclusive aquele livro. Eu atravessei a rua correndo, sem olhar para os lados, e recolhi o objeto com uma ânsia de criança, ou talvez de amante: peguei-o, ouvindo que os responsáveis pela obra cochichavam e me olhavam torto, mas segui apalpando minha nova descoberta, analisando-a. Logo vi que não era um livro, mas sim um caderno pequeno, daqueles de bolso, sem espiral e, apesar de velho, bem conservado. Admito que tive uma intensa vontade de sentar no chão ali mesmo e descobrir se aquelas páginas poderiam me dizer algo sobre o morador daquela casa, mas resolvi seguir caminho e dedicar meu tempo a ele somente quando acomodada no ônibus. Também admito que a ideia de ir até a casa de Gabriela mostrar-lhe meu achado nem passou pela minha cabeça, pois sentiria muito inveja de compartilhá-lo com alguém. Então eu segui, nunca tendo desejado tão veemente que meu ônibus chegasse logo. 
Quando sentei na última poltrona perto da janela, peguei o caderno da bolsa e toquei-o com cuidado. Parece ridículo o amor que tive por um mísero caderno antigo quando falo dessa forma, mas é a mais pura verdade. Eu abri-o com tamanha lentidão e carinho que minha ação seria passível de risos. 
Na primeira página, havia no topo escrita a palavra "delírio", com uma letra muito trabalhada, e a qual eu invejei instantaneamente. Logo abaixo desse título, havia um ponto de interrogação entre parênteses, tudo escrito em tinta azul. Vi o que mais tarde eu classificaria como poema, constituído de quatro estrofes, as duas primeiras com quatro versos e as duas últimas com três. No fim da página estava escrito "A Leda, com beijos da Ada". Datava de 1942. Na segunda página havia outro poema, escrito em outra caligrafia, que ocupava toda a folha. Ao virá-la, encontrei a dedicatória "A minha querida colega Leda, com afeição da Laida". Também de 1942. 
Ao longo das páginas passadas, eu fui entendendo que aquele era o caderno da Leda, e que vários de seus amigos, colegas e companheiros escreviam ali seus poemas como forma de lembrança. Eu não consegui ler todos durante a viagem de ônibus, visto que quase completavam o caderno, mas a primeira coisa que fiz quando cheguei em casa foi absorver todos aqueles poemas através da leitura. A próxima coisa que fiz, quando virei a última página escrita, foi chorar. Agora, analisando meu ato da época, não entendo direito o motivo do choro. Não foi por tristeza, mas também não por alegria. Acho que meus sentimentos transbordaram pelos olhos, como comumente se diz. Aquelas palavras, de variados donos, me tocaram de uma forma tão intensa, que eu não soube mais o que fazer. Eu, que na época nunca havia ousado escrever uma poesia (apesar de já ter escritos outros gêneros textuais como forma de expressão) me vi na necessidade de conseguir me expressar tão genuinamente como as pessoas que escreveram aqueles poemas. Mesmo mais de 70 anos depois eu conseguia me identificar com eles, e me emocionar com eles. Eu queria mais do que tudo ser capaz de fazer algo tão significativo quanto aqueles poemas. E foi o que eu comecei a fazer: aprendi, ao longo dos próximos dias, meses, anos, a transformar a escrita numa forma singela de expressão, para aliviar meus pesares, tocar o próximo mas, mais do que tudo, para eternizar sentimentos e momentos. 
Hoje eu posso não saber com certeza se a Leda era a dona daquela casa, e mesmo que fosse, posso não saber a fundo quem ela era, nem qual foi a sua história. Mas ela mudou minha forma de expressão e, consequentemente, minha forma de ver o mundo, e tudo isso por um mero acaso. Hoje, mesmo três anos depois de ter encontrado os registros que a Leda reuniu, eu lembro de quase todos que para ela escreveram, e ainda tenho seus poemas como livro de cabeceira. E hoje eu tenho meu próprio caderno que talvez, num futuro distante, também seja resgatado por alguém. 

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