Aluno 76
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O despertador toca às 5h. Ignoro. Às 5h20, Romildo me sacode.
“Anda, Rafa, senão vamos nos atrasar.” Coloco a primeira roupa que vejo pela
frente e pego um iogurte na geladeira. Não me esforço muito com o meu modelito,
afinal, é o meu primeiro dia de trabalho em Berlim, e a firma dá uniforme. A
preocupação com as tendências da moda ainda não chegou à construção civil.
Eu estava na capital da Alemanha para um intercâmbio e, há
tempos, andava desanimado com o jornalismo. E, no meio disso tudo, surgiu a
oportunidade de uma espécie de free-la, um job. Quando Mario, de cidadania
portuguesa, mas angolano de nascimento - e coração -, me propôs o trabalho de
pedreiro, pagando 5 euros a hora, eu achei uma troca justa. Por dia, daria uma
média de 50 dinheiros europeus.
Às 5h30, o trem chega. Vou conversando no caminho com Romildo,
goiano. “Tava difícil, né, Rafa. Tive que trancar a faculdade. E não aguentava
mais trabalhar no telemarketing daquela operadora de celular.” Naquele momento
entendi por que ele veio parar em Berlim. Muito mais digno ser pedreiro no
Velho Mundo, pensei. O trabalho é ilegal, claro, mas em casa Romildo escuta as
músicas do Mano Chao, ídolo dos imigrantes, e fica tudo bem. Ele tem apenas 20
anos, nove a menos que eu. “Welcome to Tijuana, tequilla, sexo y marijuana.”
Chegamos na obra. E começam as primeiras ordens. “Polaco, faz
isso.” “Não é polaco, é brasileiro”, explicam. “Polaco brasileiro faz aquilo”,
corrije um dos chefes. Enfim, passo a ser conhecido, na construção, como o
polaco brasileiro. Na primeira hora de batente, acho tudo muito engraçado e até
me divirto.
Às 9h30 começa o primeiro intervalo. Estou esgotado, mas feliz.
A dor muscular é parecida com a de duas horas de treino pesado na academia.
Sento num canto sozinho. Mario, que é o mestre de obras, se aproxima e começa a
puxar papo. Assunto: a língua portuguesa. Segundo ele, “o português correto é o
de Portugal”, “não existe português brasileiro” etc etc. Na hora eu me lembrei
das aulas de linguística do primeiro semestre de faculdade de jornalismo, mas
achei melhor não me expressar sobre o tema. O dia seria longo. “Concordo, o
português de Portugal é o legítimo”, digo, em bom português… brasileiro.
Com o meu atraso e a correria pra sair de casa, esqueço de
preparar um lanche. A obra fica num lugar bem afastado da região central de
Berlim, e não há nenhum lugar por perto onde eu possa fazer uma refeição.
Romildo, que jurou que eu desistiria da labuta no primeiro intervalo,
gentilmente me cede um pedaço de seu sanduíche. Agradeço e aceito.
Voltamos a trabalhar às 10h. Por enquanto, a minha tarefa
consiste em levar de um lado para o outro ferros, tijolos, sacos de areia. Dói
o corpo. Já são 11h, e estou podre. O próximo intervalo é só ao meio-dia. Sento
um minuto para descansar. (Queria tanto um café brasileiro nessa hora, mas não
tem nem alemão.) Mario berra comigo. “Vamos polaco brasileiro”, diz ele, meio
que sério, meio que brincando. Dou um sorriso e tiro forças não sei de onde
para voltar. Aguento até o meio-dia, hora do segundo intervalo.
Não tenho almoço. Acho injusto pedir um pouco da comida de
Romildo, preparada no dia anterior com esmero. Então, peço as contas. Mario
explica que não terá como me pagar pelas horas trabalhadas naquela manhã. Teria
que encarar aquele trampo por três semanas para ganhar pelas duas primeiras,
explica.
Volto pra casa, tomo um banho e durmo até as 18h. Vou até o
supermercado, onde compro carne de primeira, batatas, legumes, queijo, dois
vinhos bons. Preparo o melhor jantar possível. Espero Romildo e Mario, que
também mora comigo, com a mesa posta. Quando eles chegam, sentem o aroma do meu
tempero. Jantamos. Falamos, mais uma vez, sobre a língua portuguesa, o tema
preferido de Mario.
O bife do polaco brasileiro, jornalista e que não deu conta do
trabalho de pedreiro, recebe elogios.
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