terça-feira, 21 de junho de 2016

A Hora da Estrela

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Aluno 112


O telefone da minha mãe tocou às sete e meia de uma fria manhã de dezembro. Ela não sabia ainda, mas estava prestes a passar as próximas cinco horas em um hospital esperando pela minha morte. Quando um caminhão arrasta suas certezas pelo asfalto, tudo que resta de você no mundo são as pessoas que se importaram o suficiente para estar ali quando nada mais faz o menor sentido. Os catetos da hipotenusa tornam-se absurdamente insignificantes quando a morte chega para levar você pela mão até o infinito de possibilidades. Eu posso afirmar isso com certeza. Foi a minha mão que a morte segurou.
Clarice Lispector uma vez escreveu um livro sobre uma moça chamada Macabéa que não sentia a menor vontade de viver. Eu não entendia o verdadeiro sentido daquela história quando, aos doze anos, resolvi ler o livro pela primeira vez. Posso afirmar com todo meu coração que agora entendo. Eu costumava ter uma personalidade muito parecida com a personagem de Lispector: Nós duas não tínhamos certeza do que queríamos, nós duas sentíamos muito sono, nós duas aceitávamos que os outros tomassem decisões por nós.
Eu costumava assentir, submissa, enquanto minha família traçava a linha do meu destino em uma mão que não era minha. Eu costumava ficar em silêncio, enquanto o mundo decidia o que era certo ou errado para uma adolescente de dezessete anos fazer com seu próprio corpo. Não pinte seu cabelo, não saia com seus amigos, não use roupas curtas, não fale alto, não beba, não escute esse tipo de música, não leia esse tipo de livro, não fale esse tipo de coisa, não irrite os mais velhos, não ignore os meninos, não seja professora, não leia Harry Potter, não fale sobre política, não pense que é capaz. O problema é que, quando a morte segura sua mão, você percebe que as palavras também perdem um pouco de sentido.
Quando um caminhão que tem quatro vezes o seu tamanho resolve passar por cima da sua vida em uma manhã de dezembro, acaba levando embora todos os seus medos, todas as inseguranças, desconstruindo todos os conceitos de certo e errado pelo caminho. Eu precisei ficar em coma por cinco dias, receber o sangue de desconhecidos e ser dopada por morfina para poder enxergar o quão ridículo é tentar limitar a nossa existência. Eu precisei que a morte segurasse na minha mão para que eu tivesse vontade de viver. Você pode não entender isso agora, enquanto não enxerga os olhos afiados dos corvos da morte a cada esquina. Mas posso afirmar com toda certeza: estar aqui é mais fácil do que parece.
Existe um breve momento entre a vida normal e a morte que é crucial pra que se possa entender isso. É o momento em que você se vê deitado na rua, com sangue por todos os lugares que nunca poderia imaginar. Você consegue ouvir as sirenes e as vozes abafadas de desconhecidos. Você sente dor em lugares que jamais imaginou sentir e, por um milésimo de segundo, percebe algo errado. Você percebe quanto tempo perdeu se importando com coisas que não são realmente importantes, como convenções sociais, status ou dinheiro. Você lembra de quantos abraços negou ou de quantos sorvetes deixou de tomar por medo de engordar. Você sente falta de todos os lugares que ainda não conheceu ou de todos os beijos que ainda não conseguiu distribuir. Talvez essa tenha sido a grande beleza da minha tragédia: Eu saí de casa como a menina de dezessete anos que só queria fazer todo mundo feliz enquanto minha vida caía aos pedaços e voltei, três semanas depois, com cicatrizes, hematomas, dores e gazes por todos os lados, mas com dois novos olhos. Olhos que tinham fome de sorvetes que podiam engordar.
Aos doze anos eu não entendi quando Lispector disse, ao final do livro, que Macabéa estava finalmente, grávida de vida. Posso dizer com toda certeza que, depois de segurar a mão da morte e voltar correndo para o lado de cá, eu entendo cada mínima sílaba.




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