1 Versão
Aluno 112
O telefone da minha mãe tocou às
sete e meia de uma fria manhã de dezembro. Ela não sabia ainda, mas estava
prestes a passar as próximas cinco horas em um hospital esperando pela minha
morte. Quando um caminhão arrasta suas certezas pelo asfalto, tudo que resta de
você no mundo são as pessoas que se importaram o suficiente para estar ali
quando nada mais faz o menor sentido. Os catetos da hipotenusa tornam-se
absurdamente insignificantes quando a morte chega para levar você pela mão até
o infinito de possibilidades. Eu posso afirmar isso com certeza. Foi a minha
mão que a morte segurou.
Clarice Lispector uma vez
escreveu um livro sobre uma moça chamada Macabéa que não sentia a menor vontade
de viver. Eu não entendia o verdadeiro sentido daquela história quando, aos
doze anos, resolvi ler o livro pela primeira vez. Posso afirmar com todo meu
coração que agora entendo. Eu costumava ter uma personalidade muito parecida
com a personagem de Lispector: Nós duas não tínhamos certeza do que queríamos,
nós duas sentíamos muito sono, nós duas aceitávamos que os outros tomassem
decisões por nós.
Eu costumava assentir, submissa,
enquanto minha família traçava a linha do meu destino em uma mão que não era
minha. Eu costumava ficar em silêncio, enquanto o mundo decidia o que era certo
ou errado para uma adolescente de dezessete anos fazer com seu próprio corpo.
Não pinte seu cabelo, não saia com seus amigos, não use roupas curtas, não fale
alto, não beba, não escute esse tipo de música, não leia esse tipo de livro,
não fale esse tipo de coisa, não irrite os mais velhos, não ignore os meninos,
não seja professora, não leia Harry Potter, não fale sobre política, não pense
que é capaz. O problema é que, quando a morte segura sua mão, você percebe que
as palavras também perdem um pouco de sentido.
Quando um caminhão que tem quatro
vezes o seu tamanho resolve passar por cima da sua vida em uma manhã de
dezembro, acaba levando embora todos os seus medos, todas as inseguranças,
desconstruindo todos os conceitos de certo e errado pelo caminho. Eu precisei
ficar em coma por cinco dias, receber o sangue de desconhecidos e ser dopada
por morfina para poder enxergar o quão ridículo é tentar limitar a nossa
existência. Eu precisei que a morte segurasse na minha mão para que eu tivesse
vontade de viver. Você pode não entender isso agora, enquanto não enxerga os
olhos afiados dos corvos da morte a cada esquina. Mas posso afirmar com toda
certeza: estar aqui é mais fácil do que parece.
Existe um breve momento entre a
vida normal e a morte que é crucial pra que se possa entender isso. É o momento
em que você se vê deitado na rua, com sangue por todos os lugares que nunca
poderia imaginar. Você consegue ouvir as sirenes e as vozes abafadas de
desconhecidos. Você sente dor em lugares que jamais imaginou sentir e, por um
milésimo de segundo, percebe algo errado. Você percebe quanto tempo perdeu se
importando com coisas que não são realmente importantes, como convenções
sociais, status ou dinheiro. Você lembra de quantos abraços negou ou de quantos
sorvetes deixou de tomar por medo de engordar. Você sente falta de todos os
lugares que ainda não conheceu ou de todos os beijos que ainda não conseguiu
distribuir. Talvez essa tenha sido a grande beleza da minha tragédia: Eu saí de
casa como a menina de dezessete anos que só queria fazer todo mundo feliz
enquanto minha vida caía aos pedaços e voltei, três semanas depois, com
cicatrizes, hematomas, dores e gazes por todos os lados, mas com dois novos
olhos. Olhos que tinham fome de sorvetes que podiam engordar.
Aos doze anos eu não entendi
quando Lispector disse, ao final do livro, que Macabéa estava finalmente,
grávida de vida. Posso dizer com toda certeza que, depois de segurar a mão da
morte e voltar correndo para o lado de cá, eu entendo cada mínima sílaba.
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