Aluno 112
Reescrita
O telefone da
minha mãe tocou às sete e meia de uma fria manhã de dezembro. Ela não sabia
ainda, mas estava prestes a passar as próximas cinco horas em um hospital
esperando pela minha morte. Quando as grossas rodas de um caminhão vermelho
arrastam suas certezas pelo asfalto, tudo que resta de você no mundo são as
pessoas que se importaram o suficiente para estar ali quando nada mais faz o
menor sentido. Os catetos da hipotenusa tornam-se absurdamente insignificantes
quando a morte chega para levar você pela mão até o infinito de possibilidades.
Eu posso afirmar isso com certeza. Foi a minha mão que a morte segurou.
Eu tinha uma
prova importante naquela manhã fria de dezembro. Por isso, saí apressada de
casa, colocando o primeiro conjunto de roupas que vi pela frente e comendo um
mil folhas de chocolate que estava na porta da geladeira. Quando desci do
ônibus com a cabeça na prova que precisava fazer e os olhos no futuro, um
motorista desafortunado cruzou o meu caminho. Nunca soube como foi o resto
daquela manhã por que, no momento em que pus os pés na faixa de segurança, nossas
vidas tombaram uma na outra de uma forma que sou grata por não lembrar. Os
médicos disseram que as minhas pernas foram parar em partes diferentes do
caminhão e que meu cabelo ficou preso na roda traseira. Foram dez metros de
agonia e terror. Por meses pude ouvir o motor do caminhão rugindo nos meus
piores pesadelos.
Aos doze anos,
li um livro de Clarice Lispector cuja história retrata a vida sem ambições de
uma moça chamada Macabéa. Eu costumava ter uma personalidade muito parecida com
essa personagem: Nós duas não tínhamos certeza do que queríamos, nós duas
sentíamos muito sono, nós duas aceitávamos que os outros tomassem decisões por
nós. Eu precisei ficar em coma por cinco dias, recebendo o sangue de
desconhecidos e ser dopada por morfina para poder enxergar o quão ridículo é
tentar limitar a nossa existência. Eu precisei que a morte segurasse na minha
mão para que eu tivesse vontade de viver.
Existe um breve
momento entre a vida normal e a morte que é crucial pra que se possa entender
isso. É o momento em que você se vê deitado na rua, com sangue por todos os
lugares que nunca poderia imaginar. Você consegue ouvir as sirenes e as vozes
abafadas de desconhecidos. Você sente dor em lugares que jamais imaginou sentir
e, por um milésimo de segundo, percebe algo errado. Você percebe quanto tempo
perdeu se importando com coisas que não são realmente importantes, como convenções
sociais, status ou dinheiro. Você lembra de quantos abraços negou ou de quantos
sorvetes deixou de tomar por medo de engordar. Você sente falta de todos os
lugares que ainda não conheceu ou de todos os beijos que ainda não conseguiu
distribuir.
Aos doze anos
eu não consegui entender quando Lispector disse, ao final do livro, que Macabéa
estava grávida de vida. Posso dizer com toda certeza que, depois de segurar a
mão da morte e voltar correndo para o lado de cá, eu entendo cada sílaba.
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