terça-feira, 21 de junho de 2016

A Hora da estrela

Aluno 112
Reescrita


O telefone da minha mãe tocou às sete e meia de uma fria manhã de dezembro. Ela não sabia ainda, mas estava prestes a passar as próximas cinco horas em um hospital esperando pela minha morte. Quando as grossas rodas de um caminhão vermelho arrastam suas certezas pelo asfalto, tudo que resta de você no mundo são as pessoas que se importaram o suficiente para estar ali quando nada mais faz o menor sentido. Os catetos da hipotenusa tornam-se absurdamente insignificantes quando a morte chega para levar você pela mão até o infinito de possibilidades. Eu posso afirmar isso com certeza. Foi a minha mão que a morte segurou.
Eu tinha uma prova importante naquela manhã fria de dezembro. Por isso, saí apressada de casa, colocando o primeiro conjunto de roupas que vi pela frente e comendo um mil folhas de chocolate que estava na porta da geladeira. Quando desci do ônibus com a cabeça na prova que precisava fazer e os olhos no futuro, um motorista desafortunado cruzou o meu caminho. Nunca soube como foi o resto daquela manhã por que, no momento em que pus os pés na faixa de segurança, nossas vidas tombaram uma na outra de uma forma que sou grata por não lembrar. Os médicos disseram que as minhas pernas foram parar em partes diferentes do caminhão e que meu cabelo ficou preso na roda traseira. Foram dez metros de agonia e terror. Por meses pude ouvir o motor do caminhão rugindo nos meus piores pesadelos.
Aos doze anos, li um livro de Clarice Lispector cuja história retrata a vida sem ambições de uma moça chamada Macabéa. Eu costumava ter uma personalidade muito parecida com essa personagem: Nós duas não tínhamos certeza do que queríamos, nós duas sentíamos muito sono, nós duas aceitávamos que os outros tomassem decisões por nós. Eu precisei ficar em coma por cinco dias, recebendo o sangue de desconhecidos e ser dopada por morfina para poder enxergar o quão ridículo é tentar limitar a nossa existência. Eu precisei que a morte segurasse na minha mão para que eu tivesse vontade de viver.
Existe um breve momento entre a vida normal e a morte que é crucial pra que se possa entender isso. É o momento em que você se vê deitado na rua, com sangue por todos os lugares que nunca poderia imaginar. Você consegue ouvir as sirenes e as vozes abafadas de desconhecidos. Você sente dor em lugares que jamais imaginou sentir e, por um milésimo de segundo, percebe algo errado. Você percebe quanto tempo perdeu se importando com coisas que não são realmente importantes, como convenções sociais, status ou dinheiro. Você lembra de quantos abraços negou ou de quantos sorvetes deixou de tomar por medo de engordar. Você sente falta de todos os lugares que ainda não conheceu ou de todos os beijos que ainda não conseguiu distribuir.
Aos doze anos eu não consegui entender quando Lispector disse, ao final do livro, que Macabéa estava grávida de vida. Posso dizer com toda certeza que, depois de segurar a mão da morte e voltar correndo para o lado de cá, eu entendo cada sílaba.

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