Aluno 109
Reescrita
As ruas sempre foram sua casa.
Desde muito pequeno. E, agora, passando pelo frio rigoroso do inverno, tudo
parecia piorar. Mesmo depois de anos. Anos morando na rua. Anos sendo ignorado,
privado, esquecido. Ser um cachorro nesse mundo vazio é difícil. Ainda mais
quando não se é o mais bonito, o mais gracioso, o mais quieto ou comportado.
Quando não se foi treinado para ficar perto de outras pessoas. Quando se está
preso em sua própria mente, sem saber se comunicar com os outros. Sem poder gritar,
expelir de seus pulmões, um pedido por salvação. Mas seria esforço demais pedir
para prestarem atenção nele, afinal, a vida de seus possíveis salvadores sempre
fora muito ocupada. Tão ocupada que ele acabou ali, naquele estado, sem amparo,
sem ninguém para lhe cuidar. E, em sua racionalidade canina, ele percebe que
não é do agrado popular. Mas sabe que se agrada com tudo.
Do outro lado da rua, naquele
final de tarde gelado – daqueles que fazem o vento cortar sua bochecha –, passa
alguém despreocupado. Alguém que não quer fazer parte do clima agitado da
cidade grande. Simplesmente escolheu viver assim. Em paz. E, na calma de sua
caminhada, o homem avista algo difícil de se perder: um cão abandonado. Em sua
mente, passam diversas perguntas: será que está com frio? Com fome? Sede? Será
que escolheu viver assim? Está perdido? Não tem para onde ir? E, bem, logo se
dá conta de que ninguém escolheria ficar na rua passando frio se tivesse um
lugar quentinho e aconchegante para ficar.
Seu coração mole o fez atravessar
a rua, indo direto na direção no cachorro. Este não lhe deu bola, enrolado no
próprio corpo, deitado e encolhido, perto da saída de ar de um daqueles
arranha-céus, já que dali dava para sentir um ar mais quente passando.
Determinado, o homem não desistiu de lhe chamar a atenção. Agachou-se e passou,
cautelosamente, a mão pela cabeça empoeirada do animal. Suas orelhas estavam
praticamente congeladas.
Assim que sentiu o toque, o cão
abriu os olhos repentinamente, erguendo a cabeça e olhando desconfiado para o
humano na sua frente. O que ele queria? Lhe zombar? Fingir que lhe achou
bonitinho, lhe dar um carinho e ir embora? Virando a cara, o cachorro se
encolheu mais ainda, fazendo pouco caso da ação do homem.
Qual não foi a surpresa do animal
quando ouviu o riso caloroso do humano. Este não iria desistir fácil, pelo
visto. Ele queria chamar atenção do cachorro. Então continuou com os carinhos,
percorrendo a mão por seu corpo, como se não se importasse com a sujeira de
anos sem um banho. Era preciso paciência, provavelmente pensava o humano,
aproximando-se mais.
“Você não tem onde ficar, não é mesmo?”, o cão
escutou. A voz aveludada, meio rouca, lhe invadiu o espírito. Era como se pela
primeira vez, alguém lhe dirigia à palavra de forma carinhosa e não com chutes
e gritos. Interessado, voltou a erguer o rosto, olhando para o humano e
perdendo-se em seu olhar carinhoso.
Foi naquela hora que os dois perceberam: o laço já
havia se formado. E seria crueldade desfazê-lo. O cachorro provavelmente não
suportaria mais nenhuma outra perda, nenhuma outra oportunidade de abrigo, de
amizade e carinho indo por água abaixo. Então o humano voltou a sorrir,
erguendo seu corpo e chamando pelo cachorro enquanto batia as mãos nas próprias
coxas, chamando-lhe atenção. Isso fez o animal se erguer, esticando o corpo
gelado do frio, mas que logo se esquentou com o movimento.
Em um pulo, as patas dianteiras do cachorro foram
parar nas coxas do humano, este que não parecia se importar se sua calça
ficasse suja com as marcas que o cachorro deixaria ali. Algo ainda maior estava
acontecendo: ele estava ganhando um amigo. E, com mais algumas carícias em sua
cabeça, o cachorro sabia que seu futuro havia mudado. O humano também sabia. E,
naquele momento, ele constatou que soube desde o segundo em que avistou o
cachorro naquele cantinho gelado da rua vazia. “Você vem comigo. Vou te levar
para sua nova casa.”
Pronto para sua partida, o homem começou a andar,
voltando a chamar o cachorro do mesmo jeito de antes – batendo vigorosamente as
mãos em suas coxas –, trazendo a atenção do cachorro para si que, com um brilho
nos olhos, começou a acompanhar o amigo na caminhada. O homem continuou
falando, comentando como seria a nova casa onde o cão passaria o resto de sua
vida. E falava como se o cachorro entendesse cada coisa que ele dizia. E, quem
sabe, ele entendia mesmo. Enquanto caminhavam, os dois aprendiam que para uma
amizade florescer, não é preciso nada mais do que boa vontade; não era
necessário ser o mais bonito, gracioso ou comportado.
E, como resposta ao falatório humano, o cachorro
agradecia, esperando que o homem entendesse seu jeito de falar do mesmo jeito
que ele conseguia compreender o do outro, prometendo para si que seria o mais
leal amigo do mundo para com seu novo dono.
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