Aluno 87
Reescrita
Não sei o ano e nem o dia da semana em que aconteceu. Só
lembro que eu tinha entre sete e oito anos, talvez seis. Minha mãe saía de casa
de manhã e voltava à noite, porque ela precisava sustentar três filhas e ainda
não morava com meu pai. Apesar de ajudar financeiramente, ele tampouco ganhava
bem como professor, então as coisas não estavam fáceis —, mas, de acordo com a
Dani, já haviam sido piores. Enfim, o que importa é que eu via pouquíssimo
minha mãe e quem cuidava de mim e da Fabi, que é oito anos mais velha do que
eu, era a Dani. Havia uma babá também, mas eu mal me lembro dela. Eu e a
Fabiana supostamente dividíamos um quarto, mas a verdade é que o quarto era só
dela. Minha cama de solteiro quase não era usada, a mana gostava mesmo era de
colocar a bagunça ali. Todas as noites, sem exceção, eu dormia na cama de
solteiro da Dani. É importante ressaltar a nossa relação, porque sem isso tudo
teria sido diferente.
Por ter nascido doze anos mais cedo, Dani era a responsável,
era quem “ficava no comando” quando a mãe não estava perto. Havia uma praça
perto da nossa antiga casa e ela sempre levava eu e a Fabi para brincarmos com
a Tita, nossa cadela da época. Numa dessas tardes, a Fabi estava em algum
lugar, fazendo alguma coisa, e a Dani me disse que a gente precisava conversar.
Fiquei animada, porque ela era a única que me tratava como um ser pensante
naquela família. A mãe, a Fabi, todos os outros, mesmo meu pai, me tratavam
como se eu fosse um bebê que não conseguia compreender nem o motivo de a mãe
não poder estar sempre com a gente. Mas eu entendia, e a Dani sabia disso.
“Preciso te contar um segredo”, ela me disse. Eu adorava
segredos, porque me sentia quase uma
adulta quando ela compartilhava algo comigo.
Dani estava nervosa, eu lembro. Ela segurava bem forte na
minha mão.
“Eu gosto de meninas”.
Eu esperei pela continuação, que obviamente não veio. Então
eu fiquei realmente muito preocupada, porque, afinal, eu também gostava de
meninas! Minhas melhores amigas eram garotas, as pessoas com quem eu brincava
eram garotas! Isso era errado? Gostar delas?
“Eu também”, eu disse.
Dani riu e então me explicou que não era o gostar que eu
tinha entendido. Ela gostava de meninas do mesmo jeito que as garotas da novela
gostavam de meninos. E isso me deixou um pouco confusa, porque eu tinha visto
um beijo no dia anterior e o achara realmente nojento. Não queria que a minha
irmã mais velha fizesse algo como aquilo, independente de com quem fosse.
Beijos eram coisa de tevê.
Naquele momento, não entendi por que aquilo precisava ser um
segredo. Só vim a descobrir o que é o preconceito anos mais tarde, quando já
chegava à terceira ou à quarta série. E, para mim, nunca foi errado. As outras
pessoas falavam besteiras, o mundo inteiro estava errado, mas a Dani estava
certa. Porque ela era a pessoa que eu mais amava no universo e jamais faria
algo que fosse ruim.
Isso me marcou porque, hoje, eu tento minar quaisquer
preconceitos que eu tenha antes mesmo que eles estejam formados. Foi a Dani
quem me mostrou como fazer isso, porque ela sempre foi incrível para mim e não
é o fato de ela amar mulheres ou homens que vai mudar isso. Se ela não tivesse
me ensinado isso, eu, hoje, talvez fosse bastante homofóbica e ignorante,
porque muitas pessoas da minha família o são. Depois que a Dani saiu de casa e
foi para Santa Maria cursar Ciências Sociais, eu fiquei sozinha com a Fabi —
que nem conta como companhia, porque nos detestávamos e sempre estávamos longe
uma da outra — e com pessoas extremamente conservadoras. Cresci ouvindo
besteiras como “Deus não quer que sejamos gays” e “a homossexualidade é uma
escolha”. Se a Dani, meu maior exemplo de tudo, não tivesse me dito que gosta
de mulheres, que está tudo bem amar alguém do mesmo sexo, eu seria outra
pessoa, alguém de quem a “eu” de agora teria vergonha. Mas, ao menos nesse
sentido, ela me criou bem.
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