quarta-feira, 22 de junho de 2016

Nós gostamos de meninas

Aluno 87
Reescrita


Não sei o ano e nem o dia da semana em que aconteceu. Só lembro que eu tinha entre sete e oito anos, talvez seis. Minha mãe saía de casa de manhã e voltava à noite, porque ela precisava sustentar três filhas e ainda não morava com meu pai. Apesar de ajudar financeiramente, ele tampouco ganhava bem como professor, então as coisas não estavam fáceis —, mas, de acordo com a Dani, já haviam sido piores. Enfim, o que importa é que eu via pouquíssimo minha mãe e quem cuidava de mim e da Fabi, que é oito anos mais velha do que eu, era a Dani. Havia uma babá também, mas eu mal me lembro dela. Eu e a Fabiana supostamente dividíamos um quarto, mas a verdade é que o quarto era só dela. Minha cama de solteiro quase não era usada, a mana gostava mesmo era de colocar a bagunça ali. Todas as noites, sem exceção, eu dormia na cama de solteiro da Dani. É importante ressaltar a nossa relação, porque sem isso tudo teria sido diferente.
Por ter nascido doze anos mais cedo, Dani era a responsável, era quem “ficava no comando” quando a mãe não estava perto. Havia uma praça perto da nossa antiga casa e ela sempre levava eu e a Fabi para brincarmos com a Tita, nossa cadela da época. Numa dessas tardes, a Fabi estava em algum lugar, fazendo alguma coisa, e a Dani me disse que a gente precisava conversar. Fiquei animada, porque ela era a única que me tratava como um ser pensante naquela família. A mãe, a Fabi, todos os outros, mesmo meu pai, me tratavam como se eu fosse um bebê que não conseguia compreender nem o motivo de a mãe não poder estar sempre com a gente. Mas eu entendia, e a Dani sabia disso.
“Preciso te contar um segredo”, ela me disse. Eu adorava segredos, porque me sentia  quase uma adulta quando ela compartilhava algo comigo.
Dani estava nervosa, eu lembro. Ela segurava bem forte na minha mão.
“Eu gosto de meninas”.
Eu esperei pela continuação, que obviamente não veio. Então eu fiquei realmente muito preocupada, porque, afinal, eu também gostava de meninas! Minhas melhores amigas eram garotas, as pessoas com quem eu brincava eram garotas! Isso era errado? Gostar delas?
“Eu também”, eu disse.
Dani riu e então me explicou que não era o gostar que eu tinha entendido. Ela gostava de meninas do mesmo jeito que as garotas da novela gostavam de meninos. E isso me deixou um pouco confusa, porque eu tinha visto um beijo no dia anterior e o achara realmente nojento. Não queria que a minha irmã mais velha fizesse algo como aquilo, independente de com quem fosse. Beijos eram coisa de tevê.
Naquele momento, não entendi por que aquilo precisava ser um segredo. Só vim a descobrir o que é o preconceito anos mais tarde, quando já chegava à terceira ou à quarta série. E, para mim, nunca foi errado. As outras pessoas falavam besteiras, o mundo inteiro estava errado, mas a Dani estava certa. Porque ela era a pessoa que eu mais amava no universo e jamais faria algo que fosse ruim.
Isso me marcou porque, hoje, eu tento minar quaisquer preconceitos que eu tenha antes mesmo que eles estejam formados. Foi a Dani quem me mostrou como fazer isso, porque ela sempre foi incrível para mim e não é o fato de ela amar mulheres ou homens que vai mudar isso. Se ela não tivesse me ensinado isso, eu, hoje, talvez fosse bastante homofóbica e ignorante, porque muitas pessoas da minha família o são. Depois que a Dani saiu de casa e foi para Santa Maria cursar Ciências Sociais, eu fiquei sozinha com a Fabi — que nem conta como companhia, porque nos detestávamos e sempre estávamos longe uma da outra — e com pessoas extremamente conservadoras. Cresci ouvindo besteiras como “Deus não quer que sejamos gays” e “a homossexualidade é uma escolha”. Se a Dani, meu maior exemplo de tudo, não tivesse me dito que gosta de mulheres, que está tudo bem amar alguém do mesmo sexo, eu seria outra pessoa, alguém de quem a “eu” de agora teria vergonha. Mas, ao menos nesse sentido, ela me criou bem.

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