Reescrita
Aluno 71
Desde pequeno o hospital me foi comum.
Constantes internações ocorriam; cansativo e doloroso processo que fez parte da
minha vida até o meio da minha adolescência. O que causava minhas complicações
de saúde é o que me intriga e me faz pensar até hoje em o que o cérebro humano
é capaz de fazer e como manifesta o que está oculto em nosso emocional.
Após muitas consultas com diferentes médicos
de diferentes especialidades fazendo infindos exames e realizando diversos
procedimentos e testes químicos, busquei a ajuda de uma estudante de iridologia
(um método de diagnóstico a partir do exame da íris). Essa profissional não me
deu um diagnóstico específico, apenas me disse – após consultas psicológicas e
observação do funcionamento do meu organismo – que meus problemas físicos eram
causados por problemas emocionais.
Sempre clara, não
só para mim, mas àqueles que me observassem também, minha sexualidade foi pauta
em diversas rodinhas de conversa. Poucas horas convivendo no mesmo ambiente que
eu e qualquer um poderia perceber que eu era diferente dos demais meninos no
recinto. Criado em religião um tanto quanto rigorosa e invasiva na vida de seus
adeptos, sofri represália ao ser percebido por outros nessa congregação.
Durante muito tempo cheguei a me esconder até de mim mesmo. Negava o que era
fato, para mim e para outros. Não aceitava minha condição homossexual e tentava
não transparecê-la para que a meus pais não provocasse dor, vergonha ou ira;
ela era religiosa e ele, homofóbico. A homossexualidade somada à certeza da
não-aceitação, mexe com o emocional de qualquer criança.
A distância e as
complicações nas relações familiares que foram causadas pela minha condição,
não aceita e nem exposta ou debatida mesmo quando percebida, estavam fazendo do
convívio diário algo insuportável. Certo dia conversei com minha mãe sobre
minha vida, sobre o que eu enfrentaria e que disse que essa luta – já diária –
deveria começar em casa. Contei a ela minha condição; expus tudo o que vivi sem
ter com quem compartilhar, tudo o que sofri sem ter com quem contar e,
felizmente, fui acolhido, amado e aliviado de grande parte da tensão que sentia
e, assim, ganhei uma amiga para todas as horas. A compaixão e o amor que recebi
dela me pareciam, e ainda parecem, não ter fim. Mas algo ainda faltava: dar a
notícia ao meu pai.
Respiração ofegante, nervos à flor da pele.
Minha mãe e meu irmão, já sabendo do que se tratava a conversa para a qual a
família inteira havia sido chamada, cercavam meu pai – como cães de guarda me
protegendo. Voz tremula feito lua n’água, mas numa situação nada bela ou
romântica como tal imagem. Um turbilhão de pensamentos toma conta de minha
mente e me desestabilizam, tirando de mim a frieza e firmeza que guardei e
preparei para esse momento. Copo d’água na mão, pra ter no que mexer e assim
mascarar o nervosismo, mas parece que nada pôde me ajudar a acalmar meu coração
acelerado ou o olhar receoso de todos na sala. Silêncio absoluto e clima tenso:
chegou o momento de falar, o momento de – com sutileza – jogar a merda no
ventilador.
Peço
que meu pai, que apresentava uma expressão séria e nada fria (mais quente e
agressiva do que esperava), pare de dedilhar sua nova viola e, bebendo seu
chimarrão, me ouça por um momento. O copo d’água deslizava de uma mão para
outra que, ágil e rapidamente, o agarrava e repetia o movimento. Notícia dada:
“pai, talvez o senhor tenha um genro, não uma nora”. A tensão da velocidade do
copo saltando de uma mão para outra, o coração quase me saltando peito afora e
o silêncio dele eram torturantes e contrastavam fortemente com o lento e calmo
giro do ventilador sobre nossas cabeças. O silêncio é rompido pela fala acolhedora
de meu irmão que, como nunca o fez antes, escolheu as melhores palavras para me
acalmar naquele momento; isso se não tivesse sido interrompido por um “achei
que estava criando um homem, mas se virou nisso, não posso fazer nada”
anunciado por meu pai. Em segundos, minha resposta ríspida e tão alta que o
bairro inteiro pôde ouvir seguida do copo e da água que havia nele jogados no
chão. Explodiram, assim como explodi de raiva, de rancor e de frustração pela
expectativa de sentir novamente o alívio que senti quando contei à minha mãe.
A
intensa discussão que se seguiu foi retomada por várias semanas. Grosserias e
inconveniências eram frequentes. Não tinha mais amigos, eram todos “machos”.
Diariamente se instaurava na sala de estar um silêncio sepulcral quando
ficávamos a sós, como se eu não mais existisse. E, frequentemente, dificuldades
surgiam para as tarefas mais simples que me eram designadas. Até hoje aguardo o
dia em que o preconceito agarrado à suas entranhas irá se desprender e deixar
espaço para o amor que ele não aceita. O dia em que me ver com um amigo, ou com
um namorado, não será doloroso. O dia em que não terei o olhar dele desviado do
meu. O dia em que não sentirei na pele a ardente vergonha que ele sente de mim.
Analisando
tudo isso de forma empírica, sabendo tudo o que senti e pelo o que passei e
ainda passo, tenho a certeza de que não quero deixar que meus filhos sofram
assim; não quero deixar que sintam um terço do que senti: nem o medo, nem o
receio, nem a frustração. Aprendi que o processo de aceitação é, muitas vezes,
mais difícil e demorado do que podemos imaginar e que contar com um refúgio é
essencial para resistirmos. Quero ser, para eles, a fortaleza que minha mãe foi
para mim.
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