terça-feira, 14 de junho de 2016

Reescrita
Aluno 71


Desde pequeno o hospital me foi comum. Constantes internações ocorriam; cansativo e doloroso processo que fez parte da minha vida até o meio da minha adolescência. O que causava minhas complicações de saúde é o que me intriga e me faz pensar até hoje em o que o cérebro humano é capaz de fazer e como manifesta o que está oculto em nosso emocional.
             Após muitas consultas com diferentes médicos de diferentes especialidades fazendo infindos exames e realizando diversos procedimentos e testes químicos, busquei a ajuda de uma estudante de iridologia (um método de diagnóstico a partir do exame da íris). Essa profissional não me deu um diagnóstico específico, apenas me disse – após consultas psicológicas e observação do funcionamento do meu organismo – que meus problemas físicos eram causados por problemas emocionais.
            Sempre clara, não só para mim, mas àqueles que me observassem também, minha sexualidade foi pauta em diversas rodinhas de conversa. Poucas horas convivendo no mesmo ambiente que eu e qualquer um poderia perceber que eu era diferente dos demais meninos no recinto. Criado em religião um tanto quanto rigorosa e invasiva na vida de seus adeptos, sofri represália ao ser percebido por outros nessa congregação. Durante muito tempo cheguei a me esconder até de mim mesmo. Negava o que era fato, para mim e para outros. Não aceitava minha condição homossexual e tentava não transparecê-la para que a meus pais não provocasse dor, vergonha ou ira; ela era religiosa e ele, homofóbico. A homossexualidade somada à certeza da não-aceitação, mexe com o emocional de qualquer criança.
            A distância e as complicações nas relações familiares que foram causadas pela minha condição, não aceita e nem exposta ou debatida mesmo quando percebida, estavam fazendo do convívio diário algo insuportável. Certo dia conversei com minha mãe sobre minha vida, sobre o que eu enfrentaria e que disse que essa luta – já diária – deveria começar em casa. Contei a ela minha condição; expus tudo o que vivi sem ter com quem compartilhar, tudo o que sofri sem ter com quem contar e, felizmente, fui acolhido, amado e aliviado de grande parte da tensão que sentia e, assim, ganhei uma amiga para todas as horas. A compaixão e o amor que recebi dela me pareciam, e ainda parecem, não ter fim. Mas algo ainda faltava: dar a notícia ao meu pai. 
            Respiração ofegante, nervos à flor da pele. Minha mãe e meu irmão, já sabendo do que se tratava a conversa para a qual a família inteira havia sido chamada, cercavam meu pai – como cães de guarda me protegendo. Voz tremula feito lua n’água, mas numa situação nada bela ou romântica como tal imagem. Um turbilhão de pensamentos toma conta de minha mente e me desestabilizam, tirando de mim a frieza e firmeza que guardei e preparei para esse momento. Copo d’água na mão, pra ter no que mexer e assim mascarar o nervosismo, mas parece que nada pôde me ajudar a acalmar meu coração acelerado ou o olhar receoso de todos na sala. Silêncio absoluto e clima tenso: chegou o momento de falar, o momento de – com sutileza – jogar a merda no ventilador.
            Peço que meu pai, que apresentava uma expressão séria e nada fria (mais quente e agressiva do que esperava), pare de dedilhar sua nova viola e, bebendo seu chimarrão, me ouça por um momento. O copo d’água deslizava de uma mão para outra que, ágil e rapidamente, o agarrava e repetia o movimento. Notícia dada: “pai, talvez o senhor tenha um genro, não uma nora”. A tensão da velocidade do copo saltando de uma mão para outra, o coração quase me saltando peito afora e o silêncio dele eram torturantes e contrastavam fortemente com o lento e calmo giro do ventilador sobre nossas cabeças. O silêncio é rompido pela fala acolhedora de meu irmão que, como nunca o fez antes, escolheu as melhores palavras para me acalmar naquele momento; isso se não tivesse sido interrompido por um “achei que estava criando um homem, mas se virou nisso, não posso fazer nada” anunciado por meu pai. Em segundos, minha resposta ríspida e tão alta que o bairro inteiro pôde ouvir seguida do copo e da água que havia nele jogados no chão. Explodiram, assim como explodi de raiva, de rancor e de frustração pela expectativa de sentir novamente o alívio que senti quando contei à minha mãe.
            A intensa discussão que se seguiu foi retomada por várias semanas. Grosserias e inconveniências eram frequentes. Não tinha mais amigos, eram todos “machos”. Diariamente se instaurava na sala de estar um silêncio sepulcral quando ficávamos a sós, como se eu não mais existisse. E, frequentemente, dificuldades surgiam para as tarefas mais simples que me eram designadas. Até hoje aguardo o dia em que o preconceito agarrado à suas entranhas irá se desprender e deixar espaço para o amor que ele não aceita. O dia em que me ver com um amigo, ou com um namorado, não será doloroso. O dia em que não terei o olhar dele desviado do meu. O dia em que não sentirei na pele a ardente vergonha que ele sente de mim.
            Analisando tudo isso de forma empírica, sabendo tudo o que senti e pelo o que passei e ainda passo, tenho a certeza de que não quero deixar que meus filhos sofram assim; não quero deixar que sintam um terço do que senti: nem o medo, nem o receio, nem a frustração. Aprendi que o processo de aceitação é, muitas vezes, mais difícil e demorado do que podemos imaginar e que contar com um refúgio é essencial para resistirmos. Quero ser, para eles, a fortaleza que minha mãe foi para mim.

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