Aluno 84
Reescrita
Na minha vida cotidiana,
geralmente ocupo um lugar que prefere decifrar as vivências alheias do que
revelar os próprios enigmas. Tenho facilidade em me colocar na posição de
receptor, e a interação transcorre naturalmente dessa forma. Falar sobre si
mesmo será um difícil mas prazeroso exercício de regressão biográfica.
Relembrar a infância é a ferramenta que usarei para fazer o espelho refletir
uma imagem de 26 anos. Assim, tentarei abrir algumas gavetas.
As memórias revelam algumas
brincadeiras infantis. No velho armário, que no presente desse passado já era
antigo, administrava o escritório. Grampeador, papel carbono e máquina de
escrever em substituição à bola de futebol, pois as habilidades eram
insuficientes para jogá-la. A brincadeira – pouco comum para uma criança –
consistia em manter a documentação organizada após inúmeras e imaginárias
tarefas de uma burocracia infantil.
Na antiga caixa de som do
pai, guardada ao lado daquele armário de mesma faixa etária, apresentava o
programa de rádio. Microfone plugado transmitindo o som para uma infinita
audiência que sintonizava a sua imaginação, em substituição ao restrito número
de amigos reais. A brincadeira – pouco comum para uma criança – consistia em impostar
a voz e fazer a locução da parada musical de sucessos dos anos 1990.
No pequeno quadro verde
fixado na parede da garagem, ministrava aulas. Giz em todas as cores em
substituição ao videogame que não sobrara dinheiro para comprar. A brincadeira
– pouco comum para uma criança – consistia em preencher todo o quadro com
lições de Matemática e Português e ensinar os alunos que moravam na rua ou na
sua imaginação.
De volta à vida terrestre, o
secretário de escola se desdobra para manter organizada a escrituração de quase
mil alunos matriculados e de cerca de 70 funcionários. Em meio a um país em
crise financeira e desemprego, o jornalista graduado espera um dia colocar o
diploma em prática e usar as técnicas de locução e apresentação. Enquanto isso,
o estudante de Letras sonha em reviver a brincadeira de uma infância imortal e
de um passado tão presente.
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