Reescrita
Por Aluno 33
Em
meados de 2008, eu estava com 12 anos e tinha a inocência e ingenuidade de uma
criança na sexta série. A paixão pela Língua Portuguesa que hoje tenho ainda
não existia, de modo que não foi esse amor que me fez ligar a televisão e
assistir a um quadro televisivo de um programa famoso – e sim, a curiosidade,
esta intrínseca a qualquer ser humano normal. O quadro se chamava Soletrando e
consistia, como o próprio nome já diz, em soletrar palavras. Naquele dia frio,
a final do campeonato seria exibida ao vivo, e eu, com a jaqueta mais quente e
aconchegante que tinha, fiquei hipnotizada pelos três estudantes que disputavam
100 mil reais e soletravam palavras consideradas por mim impossíveis e desconhecidas.
Esse
“lapso hipnótico” se transformou em um interesse duradouro, uma conversa com a
minha mãe, uma inscrição representando o colégio na etapa estadual do concurso
e em uma rotina de soletração das palavras do dicionário. O tempo passou depressa,
e nesse mesmo ano me vi em uma sala enorme no SESI Rubem Berta com mais 82
estudantes. O dia era 14 de novembro, e a visão que eu tinha de uma das tantas
mesinhas da sala era parecidíssima com a que eu tinha visto na tela da
televisão: um palco, um microfone, três rapazes que atuavam como juízes e que
chamavam os estudantes pelo número do crachá e um estudante nervoso, que
soletrava palavras estranhas tentando não encarar a enorme câmera que tinha à
sua frente.
Lembro
que eu estava sentada com outras cinco meninas, todas queridas e solidárias.
Antes da competição, conversamos animadamente e quando o nervosismo e a tensão da
situação não podiam ser expressos em palavras, apenas nos dávamos as mãos e
sorríamos umas para as outras – afinal, às vezes o apoio sincero não precisa
ser dito em palavras, e essa era uma dessas vezes. Fiquei cinco horas naquela
sala com aqueles estudantes à minha volta. Quando o crachá número 38 era
chamado, eu me levantava da mesa, soletrava palavras como OCTASSÍLABO, sentia
um imenso alívio e novamente me sentava – não sem ouvir a frase que todos
almejavam: “a palavra está correta”. Ao término desses 300 minutos, todas as
crianças da sala tinham desaparecido, inclusive as que estavam ao meu lado.
Vi-me segurando um único par de mãos, e quando olhei para o lado, vi apenas uma
das meninas ali comigo. Imediatamente, câmeras vieram em nossa direção,
perguntando quem éramos e como nos sentíamos. Kaiane Mendel, a menina ao meu
lado, parecia calma e confiante; eu, atordoada.
Kaiane
se levantou e foi soletrar a palavra GENUFLEXÓRIO, mas a troca do U pelo O fez
a sineta tocar. Com todos os olhares voltados para mim, soletrei corretamente a
palavra HORTIFRUTIGRANJEIRO e a minha vida literalmente mudou. Eu era uma das
27 crianças que apareceriam na televisão soletrando palavras estranhas da
Língua Portuguesa, sendo a representante de meu estado e viajando para o Rio de
Janeiro em março de 2009. O interesse pelas palavras do dicionário se
transformou em um estudo diário, enquanto câmeras à minha frente se tornavam
presenças constantes e a minha expectativa aumentava.
Em
março de 2009, após muito estudo e empenho, conheci os outros 26 participantes
do Soletrando. Nessa primeira etapa, éramos todos campeões em busca de um sonho
comum: o prêmio de cem mil reais e o bonito troféu Monteiro Lobato para a
escola do participante que não errasse qualquer palavra. Em meio à primeira
viagem de avião de muitos de nós, ao luxo do Hotel Windsor Barra (que recebe
apenas hóspedes ilustres) e da permanente beleza do Rio de Janeiro (“o Rio
continua lindo”), a sensação era de que estávamos vivendo um grande sonho. Nos
oito dias de convivência da primeira etapa do concurso, eu e os outros
participantes muito conversamos e convivemos; a amizade entre todos nós foi,
portanto, inevitável.
Entre
entrevistas, conversas legais com a psicóloga e gravações com pessoas famosas
como Grazi Massafera e Caio Castro, eu conversava com aqueles jovens que, como
eu, também tinham sentido interesse ao assistirem à final da edição anterior do
Soletrando. Nessas conversas, descobri 26 sotaques diferentes, 26 visões
diferentes do Brasil, 26 bons corações. Ríamos e admirávamos nossas formas
diferentes de falar, sendo essa admiração às vezes apreciação (“nossa, como seu
sotaque é lindo!”) ou mesmo adivinhação (“desculpe, pode repetir o que disse?
De novo? De novo? Ah, deixe pra lá”); lidávamos de forma diferente com a
mudança radical de vida, sendo que alguns se contentavam em se trancar no
quarto e estudar mais um pouco – algo desaconselhado até pela psicóloga – e
outros, eu inclusive, curtiam a sua felicidade, tirando fotos, atirando-se à
piscina, passeando, conversando ou mesmo fugindo do segurança do hotel após
fazer alguma traquinice.
Em
alguns dias, vestíamos a camiseta do programa com a bandeira de nosso estado
(não mais um número no crachá) e ficávamos nos estúdios de televisão por 8
horas seguidas, soletrando sem parar. Ainda lembro-me das duas vezes em que
estive na cabine de soletração durante o programa: na primeira vez, enfrentei
uma menina do Sergipe e um menino do Espírito Santo. Entre o fato surreal de
estar sendo vista por uma plateia enorme, ouvir as vozes de meus companheiros
de competição (além de ouvir também a vinheta do quadro no momento da
soletração), encarei com a maior calma que pude uma ASSEMBLEIA, transformei a
semifinal em desejo e OBSESSÃO, conheci o significado de LUSO-HISPÂNICO,
assustei-me com os encontros consonantais de uma RESSURREIÇÃO e garanti a
semifinal e um computador graças a uma ESCANDESCÊNCIA antes desconhecida. Já na
semifinal e tendo sido a primeira a deixar a competição – que continuou entre
uma amapaense e uma pernambucana -, minha mais nítida lembrança foi o
pensamento de “não acredito” que tive ao ser atropelada por um GINETAÇO sem J.
Nesses 11 dias que representaram a minha
trajetória oficial no Soletrando (8 na etapa inicial e 3 na etapa semifinal),
fiz amizades que duram até hoje e tive a sensação de sonho realizado que só
voltei a sentir depois da minha aprovação no vestibular. O maior aprendizado
dessa surreal experiência foi, no entanto, o valor do estudo e como ele pode
mudar a vida de qualquer um, em qualquer lugar de um país com dimensões
continentais ou mesmo do mundo: entre os 27 estudantes, havia os que muitas
oportunidades tinham tido, sendo estudantes de excelentes colégios militares e
os que da realidade mais conheciam era o descaso com o ensino público. Mesmo
assim, todos os que lá estavam se esforçaram, se dedicaram e por meio do estudo
realizaram um sonho, representando os seus estados em uma competição nacional.
Então, não importa quem você seja ou de onde tenha vindo, o estudo te fará
alçar voos que você nem imagina. Hoje, cinco anos depois, sou uma apaixonada
pela Língua Portuguesa, estudo Letras, reencontrei a Kaiane Mendel como minha
madrinha na universidade e sou muito feliz.
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