segunda-feira, 19 de maio de 2014

Soletrando



1ª Versão
Por Aluno 33


Em nossa existência, conhecemos muitas pessoas, somos expostos a todo tipo de conhecimento, muito lemos, ouvimos e dizemos. Entretanto, grande parte dessa bagagem de nossas vidas é por nós esquecida, sendo que apenas o mais importante e relevante é cultivado em nossas memórias. Em meio aos fatos importantíssimos que para sempre serão lembrados, alguns são cultivados com especial carinho, pois representaram um grande aprendizado e também ajudaram a formar quem somos. O fato mais marcante de minha vida foi o Soletrando, evento que aconteceu há alguns anos e ainda continua tendo influência sobre a minha vida. Então, é melhor dar a essa história um começo, meio e fim.
Em meados de 2008, eu estava com 12 anos e tinha a inocência e ingenuidade de uma criança na sexta série. A paixão pela Língua Portuguesa que hoje tenho ainda não existia, de modo que não foi esse amor que me fez ligar a televisão e assistir a um quadro televisivo de um programa famoso – e sim, a curiosidade, esta intrínseca a qualquer ser humano normal. O quadro se chamava Soletrando e consistia, como o próprio nome já diz, em soletrar palavras. Naquele dia frio, a final do campeonato seria exibida ao vivo, e eu, com a jaqueta mais quente e aconchegante que tinha, fiquei hipnotizada pelos três estudantes que disputavam 100 mil reais e soletravam palavras consideradas por mim impossíveis e desconhecidas.
Esse “lapso hipnótico” se transformou em um interesse duradouro, uma conversa com a minha mãe, uma inscrição representando o colégio na etapa estadual do concurso e em uma rotina de soletração das palavras do dicionário. O tempo passou depressa, e nesse mesmo ano me vi em uma sala enorme no SESI Rubem Berta com mais 82 estudantes. O dia era 14 de novembro, e a visão que eu tinha de uma das tantas mesinhas da sala era parecidíssima com a que eu tinha visto na tela da televisão: um palco, um microfone, três rapazes que atuavam como juízes e que chamavam os estudantes pelo número do crachá e um estudante nervoso, que soletrava palavras estranhas tentando não encarar a enorme câmera que tinha à sua frente.
Lembro que eu estava sentada com outras cinco meninas, todas queridas e solidárias. Antes da competição, conversamos animadamente e quando o nervosismo e a tensão da situação não podiam ser expressos em palavras, apenas nos dávamos as mãos e sorríamos umas para as outras – afinal, às vezes o apoio sincero não precisa ser dito em palavras, e essa era uma dessas vezes. Fiquei cinco horas naquela sala com aqueles estudantes à minha volta. Quando o crachá número 38 era chamado, eu me levantava da mesa, soletrava palavras como OCTASSÍLABO, sentia um imenso alívio e novamente me sentava – não sem ouvir a frase que todos almejavam: “a palavra está correta”. Ao término desses 300 minutos, todas as crianças da sala tinham desaparecido, inclusive as que estavam ao meu lado. Vi-me segurando um único par de mãos, e quando olhei para o lado, vi apenas uma das meninas ali comigo. Imediatamente, câmeras vieram em nossa direção, perguntando quem éramos e como nos sentíamos. Kaiane Mendel, a menina ao meu lado, parecia calma e confiante; eu, atordoada.
Kaiane se levantou e foi soletrar a palavra GENUFLEXÓRIO, mas a troca do U pelo O fez a sineta tocar. Com todos os olhares voltados para mim, soletrei corretamente a palavra HORTIFRUTIGRANJEIRO e a minha vida literalmente mudou. Eu era uma das 27 crianças que apareceriam na televisão soletrando palavras estranhas da Língua Portuguesa, sendo a representante de meu estado e viajando para o Rio de Janeiro em março de 2009. O interesse pelas palavras do dicionário se transformou em um estudo diário, enquanto câmeras à minha frente se tornavam presenças constantes e a minha expectativa aumentava.
Em março de 2009, após muito estudo e empenho, conheci os outros 26 participantes do Soletrando. Nessa primeira etapa, éramos todos campeões em busca de um sonho comum: o prêmio de cem mil reais e o bonito troféu Monteiro Lobato para a escola do participante que não errasse qualquer palavra. Em meio à primeira viagem de avião de muitos de nós, ao luxo do Hotel Windsor Barra (que recebe apenas hóspedes ilustres) e da permanente beleza do Rio de Janeiro (“o Rio continua lindo”), a sensação era de que estávamos vivendo um grande sonho. Nos oito dias de convivência da primeira etapa do concurso, eu e os outros participantes muito conversamos e convivemos; a amizade entre todos nós foi, portanto, inevitável.
Entre entrevistas, conversas legais com a psicóloga e gravações com pessoas famosas como Grazi Massafera e Caio Castro, eu conversava com aqueles jovens que, como eu, também tinham sentido interesse ao assistirem à final da edição anterior do Soletrando. Nessas conversas, descobri 26 sotaques diferentes, 26 visões diferentes do Brasil, 26 bons corações. Ríamos e admirávamos nossas formas diferentes de falar, sendo essa admiração às vezes apreciação (“nossa, como seu sotaque é lindo!”) ou mesmo adivinhação (“desculpe, pode repetir o que disse? De novo? De novo? Ah, deixe pra lá”); lidávamos de forma diferente com a mudança radical de vida, sendo que alguns se contentavam em se trancar no quarto e estudar mais um pouco – algo desaconselhado até pela psicóloga – e outros, eu inclusive, curtiam a sua felicidade, tirando fotos, atirando-se à piscina, passeando, conversando ou mesmo fugindo do segurança do hotel após fazer alguma traquinice.
Em alguns dias, vestíamos a camiseta do programa com a bandeira de nosso estado (não mais um número no crachá) e ficávamos nos estúdios de televisão por 8 horas seguidas, soletrando sem parar, enfrentando o nervosismo, o desconhecido e nossa própria timidez – não sem algumas risadas, sorrisos ou lágrimas quando a sineta tocava e sabíamos que era o fim (o fim para mim aconteceu na semifinal, quando fui atropelada por GINETAÇO sem J).
Nos 11 dias que representaram a minha trajetória oficial no Soletrando (8 na etapa incial e 3 na etapa semifinal), fiz amizades que duram até hoje e tive a sensação de sonho realizado que só voltei a sentir depois da minha aprovação no vestibular. O maior aprendizado dessa surreal experiência foi, no entanto, o valor do estudo e como ele pode mudar a vida de qualquer um, em qualquer lugar de um país com dimensões continentais ou mesmo do mundo: entre os 27 estudantes, havia os que muitas oportunidades tinham tido, sendo estudantes de excelentes colégios militares e os que da realidade mais conheciam era o descaso com o ensino público. Mesmo assim, todos os que lá estavam se esforçaram, se dedicaram e por meio do estudo realizaram um sonho, representando os seus estados em uma competição nacional. Então, não importa quem você seja ou de onde tenha vindo, o estudo te fará alçar voos que você nem imagina.
Eu e os demais participantes tivemos essa mesma lição do Soletrando. Hoje, cinco anos depois, sou uma apaixonada pela Língua Portuguesa, estudo Letras, reencontrei a Kaiane Mendel como minha madrinha na universidade e sou muito feliz. Nós, participantes do Soletrando, além de sermos jovens bonitos e carismáticos, continuamos usando o estudo para crescer: muitos deles hoje estudam em universidades federais, viajaram para fora do país e tiveram mais câmeras à sua frente ao serem aprovados em vestibulares concorridíssimos – sempre ligados ao aprendizado de que o estudo é o melhor caminho e tendo tido inúmeras boas oportunidades e reconhecimento após a participação no quadro. Não se surpreenda se vir uma placa de “bixete soletrando” em algum pescoço de aprovado na federal ou jovens felizes e bem-sucedidos – nós soubemos aproveitar as oportunidades. Hoje, sou uma adolescente feliz com os seus bem vividos dezessete anos e com toda a jornada acadêmica à minha frente. Mais que isso, sou a “menina do soletrando” para sempre e alguém que sabe que o estudo tudo pode mudar. 

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