sexta-feira, 11 de julho de 2014

A leitura e produção textual como processo de construção de sentido: análise de textos produzidos com base nos conceitos de coerência, coesão e qualidades discursivas

Aluno 1
Aluno 12

RESUMO: Este artigo visa entender a produção textual como processo. Tal assunto foi trabalhado pela disciplina de Leitura e Produção Textual do curso de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Através dos textos produzidos por duas alunas que cursaram a disciplina será feita a análise desse processo e, também, será trabalhado os conceitos do que é texto e produção textual e quais recursos são podem ser usados para um aperfeiçoamento deles na construção de sentido. Todos esses tópicos apresentados fizeram parte da dinâmica das aulas, nas quais o autor dos textos tornava-se também leitor, mostrando que a escrita não é um procedimento estático, mas que precisa de interação.
Palavras-chave: processo, texto, análise,


1.      INTRODUÇÃO
Neste trabalho será apresentada a produção textual como processo reflexivo em que ambos, leitor e autor, estão envolvidos e, às vezes, com inversão de papéis. Isso ocorre para que haja um aperfeiçoamento da escrita, porque vendo o texto por  dois lados, há uma maior compreensão que contribui para o aprimoramento textual. Os textos que serão analisados foram elaborados por duas alunas do primeiro semestre do curso de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, pela disciplina Leitura e Produção Textual.
Para a produção dos textos, seguia-se uma dinâmica na qual se insere a ideia de processo, isto é, construção de sentido. Primeiramente, a proposta de texto era contextualizada: trabalhava-se a maneira com que se dava a escrita de tal texto (pelo gênero e tipo) e os conceitos teóricos a seu respeito. Escrevia-se uma primeira versão que seria lida pela professora e pelos monitores da disciplina. Quando a leitura desta versão tivesse sido realizada por todos, ela retornaria aos autores junto com um parecer.
            O parecer era escrito por um dos monitores, e nele continha sugestões de mudanças que poderiam ser realizadas no texto. O autor deveria, então, lê-lo e refletir sobre ele. Também era disponibilizada uma tabela com as qualidades discursivas e aspectos formais que deveriam ser lidos pelos alunos, essas qualidades eram uma forma de critérios de avaliação, portanto, elas deveriam se mostrar durante o texto.
            Durante as aulas, até a entrega da reescrita do texto, os alunos também elaboravam um diário dialogado, no qual retomariam as teorias trabalhadas em aula e teriam espaço para falar sobre suas dificuldades ou afinidades com a proposta determinada. Ao final, então, era realizada a entrega da segunda versão do texto. Essa era acompanhada em um portfólio que continha: a primeira versão, o parecer, o diário dialogado, a segunda versão e os critérios.
            Dessa forma, compreende-se que o texto era não é um processo estático, mas sim dinâmico. No qual precisa da interação não apenas do autor, mas também de um interlocutor, através dessa interação há um aperfeiçoamento tanto para o leitor quanto para o autor, e para o próprio texto.
            As aulas de Leitura e Produção Textual visavam essa interação, portanto nelas eram proporcionados momentos em que os alunos poderiam ler para os colegas suas produções e ouvir a crítica deles, facilitando assim, o trabalho de reescrita. Toda essa dinâmica faz parte de produção textual como processo.

2.      DESENVOLVIMENTO
O primeiro conceito a considerar quando se trata de produção textual é a definição de texto. De acordo com Fiorin (2006), qualquer meio que expresse um sentido, podendo ser verbal, não verbal (visual) e verbal e visual, como: um conto, um quadro e um filme.
De qualquer forma, como alega Fiorin (2006), texto não é um conceito tão simples, e para entendê-lo, antes é preciso entender suas propriedades. Sua principal característica é que ele precisa ter um sentido, que é obtido pela relação estabelecida entre as partes que o compõe. A primeira dessas propriedades, segundo o autor, é a coerência:
“Isso quer dizer que ele não é um amontoado de frases, ou seja, nele, as frases não estão pura e simplesmente dispostas umas após as outras, mas estão relacionadas entre si. (...) Uma frase pode ter sentido distintos dependendo do contexto dentro do qual está inserida.” (FIORIN, 2006, p. )
            Deste modo, observa-se que as partes de um texto adquirem a primeira relação entre si dentro de um contexto, fazendo com que ele não seja ilógico e desconexo, permitindo que apresente uma continuidade de sentido.
            Entretanto, não é apenas a coerência que estabelece relação entre as partes. Utilizamos da coesão para “fazer com que as ideias se entrelacem, completando-se e retomando-se, de modo que as frases sigam um fluxo lógico e contínuo, não parecendo blocos isolados”. (VOTRE et al, 2010, p. 25). Segundo Votre, Pereira e Gonçalves (2010), podemos utilizar de recursos que nos permitam manter estas retomadas. Há duas formas que nos permitem manter relação entre ideias: coesão referencial e coesão sequencial. A coesão referencial pode se dar por pronomes, léxico (sinônimos, hiperônimos e perífrase), já na sequencial se dá por conectivos, que por sua vez, podem manter relação de causa, consequência, condição, oposição, finalidade, entre outras.
            A construção de sentido para um texto é dada pelos elementos de coerência e coesão trabalhados anteriormente, mas é válido pautar a importância da escrita. Segundo Guedes (2009), a escrita é uma atividade útil para os indivíduos, no sentido de organizar ideias e reflexões que se valem mais do que uma conversa de bar. É também, em segundo lugar, “necessária para o entendimento da complexidade tanto da vida numa sociedade organizada a partir da palavra escrita quanto da complexidade do conhecimento que nela a palavra escrita processa” (GUEDES, 2009, p. 81). E por ultimo, é fundamental para o entendimento mútuo entre os homens.
            Ainda com base nos conceitos de Guedes (2009), trabalhemos com a ideia de escrita como produção de texto, na qual se pressupõe que os leitores vão dialogar com o texto produzido: concordar e aprofundar ou discordar e argumentar. O sentido disso é trabalhar com texto como uma atividade reflexiva, isto é, que se possa ter a oportunidade de localizar aquilo que pode melhorar e mudá-la por percepção e não por correção.
            Desta forma, não basta apenas produzir textos. Precisa-se focar com olhar crítico a leitura desse texto para então conseguir encontrar aquilo que precisa ser alterado. Se o caráter da escrita e da produção textual é social, com a leitura não poderia ser diferente. Há uma relação estabelecida entre o leitor e o autor, que é dada pelo enunciado, como é afirmado no trecho abaixo:
O enunciado dirigido a um interlocutor (outro) varia, por exemplo, dependendo do grupo social deste. Por não existir interlocutor abstrato, o enunciado comporta duas faces: é determinado por proceder de alguém e dirigir-se a alguém. O enunciado é justamente o produto da interação entre os usuários (leitor e escritor) e, portanto, por intermédio do enunciado define-se quem se é em relação ao outro. (ROTTAVA, 2012, p. 163-164).
            Este conceito de prática de leitura observado se relaciona fortemente com a ideia de diálogo com o texto produzido através da produção textual. Ainda segundo Rottava (2012), o ponto de partida do texto é um “querer dizer”, e esse, por sua vez, seria responsável também pelo propósito de leitura. Nesse sentido, para realizar a leitura em busca do aperfeiçoamento textual, deve se olhar com um propósito para o texto e captar também o que ele também está querendo dizer.
            Há instrumentos que facilitam a identificação do propósito de um texto e também que auxiliam o leitor para encontra-lo. Não obstante, há outras ferramentas que também podem ser usadas pelo leitor e pelo autor para reconhecer as partes que devem ser alteradas para um aprimoramento do texto.
            Para o primeiro, podemos definir gêneros e tipologias textuais. “Os gêneros apresentam características sócio-comunicativas definidas por conteúdos, propriedades funcionais, estilo e composição característica” (MARCUSCHI, 2002, p. 23). Observa-se uma enorme quantidade de gêneros textuais: cartas pessoais, reportagem jornalística, horóscopo, carta eletrônica, etc. No presente artigo, serão mencionados alguns em específico: apresentação pessoal, relato de experiência, descrição de processo, memorial e reportagem. O seguinte trecho ajuda a reforçar a ideia de como o gênero ajuda a definir o “querer dizer” de um texto:
Já se tornou trivial a ideia de que os gêneros textuais são fenômenos históricos, profundamente vinculados à vida cultural e social. Fruto de trabalho coletivo, os gêneros contribuem para ordenar e estabilizar as atividades comunicativas do dia-a-dia. São entidades sócio-discursivas e formas de ação social incontornáveis em qualquer situação comunicativa (MARCUSCHI, 2002, p. 19).
            Já as tipologias são mais abrangentes e englobam os gêneros: “usamos a expressão tipo textual para designar uma espécie de construção teórica definida pela natureza linguística da sua composição (aspectos lexicais, sintáticos, tempos verbais, relações lógicas)” (MARCUSCHI, 2002, p. 22). Enquanto os gêneros são inumeráveis, os tipos são poucos e podem ser todos citados aqui: narração, argumentação, exposição, descrição e injunção. Vale ressaltar que os tipos textuais são dificilmente mantidos em tais estruturas do início ao fim, como um texto descritivo, raramente será encontrada uma descrição por inteiro, elas geralmente se mesclam entre si, sobre isso Marcuschi afirma que “entre as características básicas dos tipos textuais está o fato de eles serem definidos por seus traços linguísticos predominantes. Por isso, um tipo textual é dado por um conjunto de traços que formam uma sequência e não um texto” (MARCUSCHI, 2002, p. 27).
            A terceira ferramenta que é utilizada para identificar os aspectos que podem ser melhorados no texto são as qualidades discursivas, são elas: unidade temática, questionamento, objetividade e concretude. Paulo Guedes é o autor que trabalha com os conceitos das qualidades, ele as explica como “um conjunto de características que determinam a relação que o texto vai estabelecer com seus leitores por meio do diálogo que trava não só diretamente com eles, mas também com os demais textos que antecederam a história dessa relação” (GUEDES, 2009, p. 94).
            A unidade temática diz a respeito do assunto que será tratado. Guedes (2009) defende que ao falar de muitos assuntos em texto, fala-se pouco de cada um, não dando profundidade ao tema e, desta forma, causando desinteresse no leitor. Afirma o autor: “Sem a composição de um todo, sem tentativa de estabelecer uma ordem para as coisas, não há interlocução, pois o ouvinte ou leitor não vai poder confrontar a ordem proposta com a aquela que ele construiu para si ao encetar o diálogo.” (GUEDES, 2009, p. 95).
            O questionamento está diretamente relacionado com a unidade temática. A partir do tema definido, há, com base nele, um problema que deverá ser resolvido ou equacionado. É com base nessa problematização que será despertado o interesse no leitor, o questionamento é um convite ao leitor para participar da narrativa.
            A objetividade é a qualidade que se responsabiliza por mostrar os objetos como objetos. É mais importante que o texto mostre do que diga. O autor define de uma forma muito interessante essa qualidade:
“O autor precisa mostrar-se digno de crédito, não pela solenidade de seus juramentos, mas pela eficiência de seus argumentos, pela veracidade dos fatos que relata (ou, pelo menos, da verossimilhança, isto é, pela coerência que os faz possivelmente verdadeiros), pela consistência do enredo que foi capaz de tramar, pela vivacidade das cenas que constrói, pelo conhecimento que seu texto produz.” (GUEDES, 2009, p. 109)
            A concretude, por sua vez, fornece dados que possam criar uma imagem para o leitor daquilo que está sendo mostrado. Estes dados devem ser assimiláveis pelo leitor, para assim deslocarem-se do plano abstrato para o concreto. Mas mais que isso, a concretude tem de fornecer parâmetros ao leitor: falar tanto das semelhanças quanto das diferenças, para que o leitor possa, através delas, identificar-se ou confrontar-se.
Quando o escritor começa um texto, ele deve pensar em três perguntas básicas: do que o texto vai falar? Por que ele vai contar esta história? O que o leitor tem a ver com isso? A resposta para elas é o próprio autor que vai dar, pensando em seu público alvo e despertando interesse nele através das qualidades discursivas.
            Os textos produzidos têm como base os conceitos trabalhados até agora, utilizaram os recursos para de coerência e coesão para manterem um sentido no texto e as qualidades discursivas para qualificarem os textos. A primeira produção textual foi uma apresentação pessoal.
            Segundo Marcuschi (2002), há uma grande importância em escrever uma apresentação pessoal, não só porque para partir para o conhecimento de mundo é necessário conhecer-se a si mesmo, mas também porque o leitor quer ver o autor através do texto. E para quem escreve serve para fixar a autoimagem momentânea, sendo uma forma de autoconhecimento, como afirma o autor de forma clara e poética: “somos tão infinitos quanto o universo, o mundo lá fora, e tanto maiores nos descobriremos quanto mais soubermos de nós mesmos” (MARCUSCHI, 2002, p. 93).
            Portanto iniciar a disciplina com este texto foi fundamental para a dinâmica da disciplina, pois todos os alunos teriam de ser autores e leitores. Com base nisso, as alunas produziram seus textos.
A primeira proposta era uma apresentação pessoal, no exemplo 1, sendo a primeira versão da aluna G., mostram-se conceitos abstratos, que não atendiam à qualidade de concretude e não forneciam parâmetros para o leitor. Como no trecho a seguir:
(1)   “Talvez tenha disso a busca por uma única definição para o que eu era que me guiou até a pessoa que acabei por me tornar”. (G.)
A autora não especifica a definição que busca e nem o que acabou por se tornar, assim, deixando o leitor pouco situado no texto e em quem ela é. Ao longo do texto ela conta o quanto gosta de ler e que as histórias de heróis e contos que lia lhe ajudavam-na a definir-se. Por si só, o tema é abstrato, mas na segunda versão, a autora conseguiu criar um cenário no qual o leitor poderia imaginá-la.
(2)   “Não havia ainda descoberto quem eu era, e a medida que eu crescia, ficava maior também a pilha de romances na cabeceira de minha cama. Segurava os livros diante dos olhos como quem se mira em um espelho e neles via refletidos apenas alguns traços meus: os belos, os valentes e também os sombrios. Desenvolvi certo fascínio – quase como Narciso, personagem da mitologia grega que apaixonou-se por sua própria imagem ao vê-la refletida no lago – em observar meu reflexo nas páginas impressas dos livros, e apaixonei-me pelo sentimento de me reconhecer nas histórias. (G.)
Através da pilha de livros ao lado da cama, do segurar os livros diante dos olhos, o leitor consegue imaginar que ela é uma pessoa que gosta muito de ler. Ela comprova isso quando compara sua paixão pela identificação dela nos livros ao amor de Narciso pela sua própria imagem.
No exemplo 3, a aluna A. também mostrou na apresentação pessoal dificuldades com a concretude. Teve um parágrafo inteiro abstrato:
(3)   Parar para me descrever é uma tarefa complexa. Exige que eu pare de olhar e apontar os defeitos dos outros e analise mais os mais. Não é simples, entretanto, se olhar para os outros como meu espelho consigo ver com mais clareza quem sou.  Eu costumo fazer isso, e, percebo que, muitas vezes, os defeitos dos outros que mais me incomodam são os mesmos que os meus, mas que não consigo ver. Ao fim dessa tarefa, adquiro um grande conhecimento sobre eu mesma. (A.).
Mas assim como a aluna G., A. em sua reescrita buscou elementos acrescentar elementos concretos que facilitassem a compreensão do leitor. Ela se define como uma pessoa que expressa o que sente, por isso, tem um letreiro luminoso aceso (ou não) acima de sua cabeça:
(4)   “Sigo carregando comigo esses sentimentos de felicidade, tristeza ou frustração. Claro que eles variam e, como disse, na maioria das vezes, estou feliz. É como se eu tivesse um letreiro luminoso em cima de mim que demostram como estou naquele dia, mas que não está sempre aceso.” (A)
A segunda proposta de produção textual deveria ser o relato de uma experiência que resultou em algum aprendizado para o autor. O gênero predominante nessa proposta é a narrativa, que segundo Guedes (2009): “(...) implica, em primeiro lugar, necessariamente uma reavaliação pessoal das ideias correntes a respeito da situação social em que a história se localiza e, das instituições nela envolvidas”. Para a realização desse texto era importante pôr o personagem em foco, suas ações e a maneira como os acontecimentos foram particularizados por terem ocorrido com aquele ser em específico. Dessa maneira, é estabelecido um motivo para narrar a história. É importante notar também que o autor deve detalhar os fatos, mostrando-os e descrevendo-os para que assim o leitor possa decidir o que pensar e avaliar as situações narradas por si mesmo.
(5)            “Eu fiquei em silêncio somente ouvindo e observando as janelas começarem a se iluminar pelas velas acesas. Caminhei até a minha janela que estava levemente iluminada pelo luar. O luar. Tão bonito e tão singelo, ele me remete a minha infância, onde deitados sob a lua e as estrelas meu pai introduzia os primeiros questionamentos filosóficos em mim e na minha irmã.
Uma casa no interior de uma cidade pequena, onde as luzes da cidade não ofuscavam o brilho das estrelas e podíamos parar para observá-las. Foram algumas as vezes em que fizemos isso, e ali, com aquela vista do luar, comecei a me questionar sobre o que  realmente era aquilo, o céu, e por que era tão grande, ou melhor, infinito.” (A)
No exemplo 5, a autora do texto introduz um tempo, um espaço e os personagens ao entorno dos quais a narrativa orbita, estabelecendo assim elementos de concretude que se mantiveram na reescrita. A razão pela qual a história nos está sendo contada fica explícita no trecho que segue:
(6)    “Naquela noite que meu pai me revelou que o céu era infinito, eu estava ganhando um novo amigo: o questionamento. Saber que somos um pontinho envolto por algo sem fim me faz, realmente, me sentir pequena como uma formiga. Mas não é uma sensação ruim. Por causa do meu novo amigo – que agora já é velho, transformo a normal pergunta do: então por que existo se sou tão pequena? em: o que há tão pequeno quanto eu através desse céu? Então, o infinito me ensinou, sobretudo, que posso ser pequena, mas jamais estarei sozinha.” (A)
É então apresentado ao leitor o aprendizado que decorreu da experiência narrada e isso contribui não só para a concretude, mas também para o questionamento do texto. A aluna G. também começa seu texto apresentando os aspectos fundamentais para uma narrativa (tempo, espaço e personagens) e o problema que constrói o questionamento:
(7)   “Existe uma sigla que tem o poder de causar fortes reações à maioria dos alunos do Colégio de Aplicação da UFRGS, no qual cursei toda a minha educação básica. (...) Essa sigla quer dizer Iniciação Científica, e se hoje ela me causa alguma reação frustrada é porque não percebi antes que a atividade não era aborrecida – eu é que não sabia como fazê-la.” (G.).
A terceira proposta de produção textual consistia em uma descrição de um processo cotidiano. Esse gênero se centra primordialmente no espaço, e além estabelecer as qualidades discursivas comuns às produções, foi utilizado também o conceito da “faca” definido por Guedes (2006). A “faca” se refere ao narrador, à voz que fala no texto e o recorte que faz no tema, selecionando uma linha de pensamento para seguir ao fazer a descrição, e, portanto, qual o objetivo de fazê-la. Essa seleção é essencial para que o texto mantenha a unidade temática, assim como outras qualidades discursivas.
Ao observar os textos das duas alunas, A. e G., desta proposta, nota-se que a construção do espaço se deu de forma diferente. No texto de A. predominou o gênero textual narrativa, como se percebe no exemplo 8:
(8)   “Daqui de baixo vejo tudo, todos os passos dados. Sou tão pequena e quase não notada. Estava situada no meio do percurso daqueles quatro pés. Do sapato e da bota. O pé levantava, eu via a sola.” (A.)
A proposta da produção visava uma descrição; ainda que o texto 1 apresente um processo que se desenvolve, esse acontecimento é contado, tornando a ação, o tempo e o personagem mais importantes que o espaço. Quando são apresentados objetos, o texto traz diversos parâmetros concretos:
(9)   “Olhei para um lado, olhei para o outro. Sapato, preto, sola marrom, número 40. Bota cinza, velha, desbotada, sola também marrom, número 36.”(A.)
Este aspecto contribui para a formação de uma imagem mental para o leitor, porém o foco principal do texto não estava da descrição em si.
No exemplo 10, narra-se um único processo de forma que pretende ser bem visual, como no trecho:
(10)      “Pode ser que se encontre em um quarto escuro como piche, a ponto de não ser possível ver as mãos ante o rosto; pode ser que o cômodo esteja apenas pouco iluminado, ou que não seja muito arejado.”(G.)
Este aspecto dá concretude ao texto. O recorte feito para esta descrição, embora tenha garantido unidade temática prejudicou o questionamento, pois o texto é encerrado sem um real acontecimento ou ação.
Na reescrita do texto de A. é possível notar que as descrições estão mais destacadas:
(11)      “Dali de baixo eu via as irregularidades da calçada, uma lajota mais alta que a outra. Era noite, aproximadamente 23 horas, e as luzes amareladas”.(A.)
A quarta proposta visava a produção de um memorial de leitura. Para a realização desta, os alunos deveriam narrar, de acordo com as qualidades discursivas, as lembranças marcantes de suas vidas relacionadas à leitura, analisando-as e aplicando teorias vistas em aula. Esse gênero pode ser definido como:
“O memorial é um tipo de escrita de si, uma narrativa descritiva e reflexiva sobre uma trajetória de vida e de formação. A grande riqueza da experiência do memorial é compreendida quando o rememorar dos eventos constrói pontes com o presente, criando insights que vão dar lugar a verdadeiras aprendizagens.” (GASPAR et al. 2011 p.3)
            Segundo Gaspar et al. (2011), o memorial é construído por fases: a iniciática, quando o autor narra o passado de forma nem sempre clara e objetiva, apenas trazendo à tona lembranças; a mimese II (maiêutica), que é o momento quando o autor deve transformar esses acontecimentos de sua história em uma narrativa que contenha uma unidade, e a mimese III é quando o autor deve trazer a reflexão para o texto e perguntar-se que evolução pessoal se deu a partir de todos os eventos narrados.
            Essa proposta trouxe aos alunos a tarefa de fazer citações ao refletir sobre suas experiências como leitores, visando sempre se basear nos artigos teóricos estudados em aula, como a aluna A. faz no seguinte trecho:
(12)      “De fato, a leitura aconteceu em minha vida desde muito cedo. Lia as imagens que via em livros infantis e nos desenhos animados, lia a cena de minha mãe estar contando histórias para mim. Mas essas leituras perdem um pouco do valor na sociedade, segundo Britto (2012) apenas leituras de livros e de conteúdos que estão além daquelas que praticamos no dia a dia que são consideradas construtivas para um leitor.”(A)
            Além de aplicação teórica, no exemplo (13) também é possível perceber o formato narrativo do memorial e a reflexão que nele deve ser feita, relacionando recordações e conceitos. A análise das memórias (mimese III) feita pela autora fica melhor explicitada no exemplo que segue:
(13)      “Olhando por esse lado, percebo que meus pais fizeram isso comigo durante toda a minha infância. Nunca me forçaram a ler nada que eu não tivesse interesse, mas sim, de forma sutil, como eu disse anteriormente. Aos poucos comecei a imitá-los, por exemplo, meu pai costumava ler jornal, eu o via lendo e isso despertou vontade de ler aquilo também. Minha mãe sempre gostou de romances, eu a via lendo – achava, na verdade, os títulos desinteressantes –, mas vê-la lendo, me fez despertar também interesse por romances, não os mesmos que os dela, mas outros títulos e outros autores.”(A)
            Os aspectos acima apresentados estavam presentes na primeira versão do texto e também na reescrita. É possível observar novamente o processo de reflexão no memorial da aluna G, como segue:
(14)      “É possível perceber que as obras de ficção que optei por ler demonstram um crescente grau de complexidade, ainda que no geral possam ter temas parecidos. Esse crescimento reflete o desenvolvimento dos conhecimentos linguístico, textual e de mundo (KLEIMAN, 1995) que possuo, me permitindo maior aprofundamento nos sentidos, tanto objetivos (como de que forma um livro pode refletir a sociedade ou época em que foi escrito), quanto nos subjetivos (metáforas, sentimentos expressos etc.) das obras que leio.” (G.)
Esse trecho traz também a análise teórica prevista para a realização da tarefa, sendo antecedido por momentos narrativos, nos quais a autora conta o que lia, como e porque, assim como a aluna A, cumprindo os critérios da tarefa.
            A quinta proposta consistia em um texto do tipo argumentativo. Neste texto, as alunas deveriam apresentar uma tese a ser defendida e buscar fontes, através de entrevistas ou pesquisas já existentes que substanciassem as suas teses. Esses suportes fornecidos são fundamentais em um texto deste gênero, pois ele está sujeito a críticas. Como afirma Guedes (2009), a respeito de que antes de escrevermos, ouvimos sobre o assunto. Temos uma ideia porque estivemos em contato com ela algum dia, portanto, mencionar quem nos “deu” essa tese é uma forma de substanciá-la.
            Segundo Guedes (2009), há certas atitudes argumentativas que devem aparecer nas produções, como a comparação, análise, classificação e definição. Onde é apresentado o problema a ser solucionado no texto. É feita uma comparação se ocupa de verificar semelhanças e diferenças e com base nisso, compreender a realidade, organizá-la para nela nos orientar. Sendo assim, em um texto argumentativo a comparação se faz fundamental por apresentar parâmetros ao leitor. Logo após, faz-se uma análise daquilo que é comparado, isso se faz em partes.  A classificação “trata-se do enquadramento de um grupo de ideias em um conjunto maior juntamente com outros grupos de ideias com características semelhantes” (GUEDES, 2009, p. 284). Definição, por sua vez, é a forma como organizamos (por gênero ou diferença) que reproduz o modo como as palavras se organizam para fazer sentido.
            Para uma argumentação ser consistente ela deve apresentar apenas uma tese e desenvolver argumentos a respeito dela. É possível ver que no trecho a seguir não há nenhum dado concreto que situe o leitor no assunto que será defendido no texto:
(15)      “O primeiro e mais importante passo para o reconhecimento de uma língua que é utilizada hoje pelos brasileiros é saber se esses a identificam como tal.” (A.)
            O exemplo 16 é a introdução de uma reportagem, e não mostra com clareza a ideia que será trabalhada. Na afirmação não há nenhuma consistência da tese e ela poderia ser facilmente contestada. Isso pode apresentar, inicialmente, problemas com a concretude, pois não envolve argumentos sobre um assunto objetivo.
            Deste mesmo ponto de vista, podemos analisar o próximo exemplo:
(16)      “Não é incomum, quando se é uma aluna de ensino médio, ouvir (e também dizer) diversas vezes a mesma coisa: mas para que vou usar isso na minha vida? Sempre há pelo menos uma matéria que pode deixar o aluno olhando as páginas em branco do seu caderno, questionando-se silenciosamente: “por que eu preciso saber isso?”.
            Da mesma forma que no exemplo 16, o trecho 17 não apresenta nenhum dado concreto. A tese pode estar bem explícita: qual é a importância de determinado assunto na vida de um estudante do Ensino Médio. O determinado assunto é apresentado logo a seguir pela autora, a literatura. Mas, apesar da tese se mostrar ela não apresenta nenhum argumento forte a seu favor.
            Retomando a ideia de que apenas reproduzimos algo que já ouvimos, ambos os textos, em suas segundas versões usam desse recurso que substancia as suas teses, compare:
(17)      “A língua está diretamente relacionada com a sociedade, e não são recentes as pesquisas relacionadas a esse fato. Temos, entretanto, um marco relevante a elas: em 1972 o linguista William Labov publicou o livro Padrões Sociolinguísticos, no qual ele defende que “as pressões sociais estão operando continuamente sobre a língua” (LABOV, 2008, p. 21). Foi provado por ele, empiricamente, que contexto social ao qual o falante está inserido influencia na forma como ele fala. Isso mudou a concepção de língua, que até antes era tida como interiorizada ao ser humano, e não como um fato social. De acordo com essa ideia, fica a pergunta: se a sociedade muda, logo, as pressões exercidas por ela sobre a língua, também mudam. Então, como se pode tentar estabelecer o padrão para algo mutável?”
            Observe que desta vez há uma tese explícita ao leitor, há uma referência a um importante linguista o que deixa ela bem convincente. Quanto à segunda versão do exemplo 16, são utilizados que deixam a tese bem reforçada e ela fica mais explícita:
(18)      “Pesquisa realizada pela Ipsos, empresa mundial de pesquisa e inteligência de mercado, revela que apenas 17% dos estudantes entre seis e nove anos têm Literatura/Português como sua matéria preferida. Mesmo que estes dados tenham sido observados em um grupo restrito cujos estudantes são ainda muito novos, não é incomum observar que esse padrão se repete em séries mais avançadas e até no Ensino Médio”
As ideias que são apresentadas em ambos os exemplos não são mera invenção das autoras, mas são trabalhadas por uma empresa de pesquisa e um teórico importante. Elas ficam mais verossímeis, quando o leitor começar a leitura ele logo entenderá do que se trata o assunto e talvez já comesse ela convencido daquele fato.
 A concretude, especialmente nestas situações, se faz essencial, nos outros gêneros textuais ela era responsável para criar uma imagem ao leitor, aqui ela é responsável por criar uma opinião. Baseada em fatos reais que permitam ao leitor, bem como nos outros casos, uma imagem de algo que é real, portanto, verdadeiro.

3.      CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após a revisão dos textos, percebemos que há uma grande importância do processo de produção textual. A dinâmica realizada nas aulas é determinante para os alunos à medida que através dela eles vão construindo criticidade sobre os próprios textos.
O valor que concluímos dos pareceres é que através dele, a próxima leitura do próprio texto seria em busca daquilo que havia sido sugerido para mudança. Quando se faz essa busca, automaticamente se faz uma reflexão. Esta é relevante para o processo de produção textual, pois é a partir dela que ocorre o aperfeiçoamento da escrita.
            Também é fundamental que o aluno tenha consciência sobre o objeto de reflexão. É por isso que em sala de aula eram discutidas as qualidades discursivas, para o aluno ter um entendimento sobre o assunto, sobre o que deveria buscar e melhorar no seu texto. Não obstante, era oferecido aos alunos um momento em que eles poderiam contar a respeito de suas experiências enquanto escritores, suas dificuldades e facilidades com tal proposta de texto.
            Num sentido mais geral, classificamos esse processo como relevante. As análises mostram uma evolução positiva da primeira à última produção das alunas. Sendo assim, a teoria da construção de sentido na produção de texto (coerência, coesão e qualidades discursivas) através da dinâmica realizada em aula (portfólio: primeira versão do texto, parecer, diário dialogado, reescrita e critérios de avaliação), se mostra eficiente tanto na teoria quanto na prática.


REFERÊNCIAS
GUEDES, P. C., Da redação à produção textual: o ensino da escrita. São Paulo: Parábola Editorial, 2009
MARCUSCHI, L. A. In DIONISIO, A. P. et al. Gêneros Textuais & Ensino. Rio de Janeiro: Editora Lucerna, 2002
PLATÃO, F & FIORIN, J. L. Lições de texto: leitura e redação. 5ª Edição, São Paulo: Ática, 2006
VOTRE, S. J & PEREIRA. V. C. & GONÇALVES, J. C. Desenvolvendo a competência comunicativa em gêneros da escrita acadêmica. Editora da UFF. Niterói: 2010.
ROTTAVA, Lucia; A leitura em contexto acadêmico: o processo de construção de sentidos de alunos do primeiro semestre do curso de letras In Signo; v. 37 n.63, p. 160-179, 2012
GASPAR, M. M, G. de S.; ARAÚJO, M. de F.; PASSEGGI, M. de C. Memorial - Gênero Textual (Auto) Biográfico. Rio Grande do Norte, 2011

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