sábado, 12 de julho de 2014

Memorial de Leitura

1ª Versão
Por Aluno 28



Há muito tempo atrás, tão logo as galinhas deixaram de ter dentes, eu nasci. Minhas primeiras memórias são relacionadas ao Papai Noel, ao Coelhinho da Páscoa, a comer terra, a beber no bico, escondida, um xarope amarelo, a brincar com minha boneca “Senhorinha”, e a arrumar o quarto do meu irmão, deixando organizados, ao meu modo, os volumes em tom pastel de uma coleção dos contos de Grimm assim como os volumes vermelhos da enciclopédia Delta Júnior, todos de pé, com as lombadas viradas para frente, apoiados em porta livros improvisados com brinquedos, e deixando, no centro, um único volume invertido, meio aberto, com as páginas voltadas para frente, ávidas pela espiadela de um potencial leitor. Achava lindo... queria um dia ter no meu quarto uma coleção de livros de capa dura como aquela; coisa que demorou muito a acontecer, já que dividia o quarto com outras duas irmãs, e não sobrava muito espaço lá, para o que não fosse cama ou armário.
Meu letramento iniciou no jardim; conforme Rottava/2000, letramento diz respeito a condição de quem não apenas sabe ler e escrever, mas cultiva (dedica-se a atividades de leitura e escrita) e exerce (responde às demandas sociais dessas mesmas habilidades)... minhas primeiras lembranças de escola são de ler livrinhos de história para meus colegas no jardim, contam que aprendi a ler muito cedo e, no inverno em que completei 6 anos, após as férias de julho, fui transferida para a primeira série. Me sentia importante contando as historias, e lembro das outras crianças sentadas ao meu redor, quietas, enquanto eu lia. Acredito que gostava mais de ter o poder da leitura, de ter a atenção de todos voltada para mim, do que propriamente de ser capaz de decodificar tais livrinhos. Usava já em tão tenra idade, a leitura como prática social, como menciona Wallace/93 em Rottava/2000
Mais ou menos a partir desta época lembro que nossa família frequentava nos finais de semana, a AABB (Associação Atlética do Banco do Brasil)  onde meus pais jogavam tênis e nós, as crianças, divertíamos na “floresta”, uma grande área verde que lá havia, mas não sem antes passarmos na biblioteca do clube e pegar o Manual do Escoteiro Mirim, ou o Manual do Professor Pardal, para que, de posse destes elementos indispensáveis para a sobrevivência na selva, passar horas de extremo divertimento e pesquisa, buscando plantas exóticas, tentando montar barracas com a vegetação, testando diferentes tipos de nós, etc. Agora, enquanto escrevo sobre estas memórias,  percebo como essa biblioteca alimentou, a partir destes exemplares, a Márcia prática e adaptável de hoje, treinada a partir das diversas possibilidades que a selva oferecia; a Márcia curiosa das ciências exatas e biológicas; também a partir dos livros da coleção do Asterix, que também costumava levar para casa durante a semana, alimentei meu lado historiadora; e com a coleção Anita, fortaleci meu lado menina, meiga, maternal. Eram livros com ilustrações belíssimas sobre situações vividas pela menina-título, em seu dia-a-dia. E quanto à coleção dos contos dos irmãos Grimm, tinha um conto que adorava ler, ou que assim alguém assim o fizesse para mim, que contava sobre umas moedas caídas do céu para uma pobre menina muito bondosa que dividia o pouco que tinha com outros necessitados, até quase morrer de frio, quando, então recebia este milagre do céu. Eram leituras absolutamente prazerosas, sem qualquer consciência de que estava fazendo algo que não fosse diversão, e sem a menor consciência do quanto delas eu levaria dentro de mim tantos anos mais tarde!
Fiz o primário, e o segundo grau durante a ditadura militar, todo o enfoque de leitura, escrita, interpretação de texto eram pensados de forma a não exigir reflexão mais profunda, o que se deveria saber, já se encontrava nos textos, bastava procurar atentamente a resposta presente ali; tínhamos vários livros do tipo “estudo dirigido”, onde as respostas certas encontravam-se no próprio texto, sem margens para respostas diferentes das previamente decididas pelo autor; ninguém era muito estimulado a pensar.
Defasado do âmbito mundial, por alguns anos, as teorias de leitura vigentes àquela época, ainda eram entendidas, como afirma Rottava/98, como atividade descendente (bottom up), ou seja, ler é extrair sentidos pelo leitor como decodificação dos elementos linguísticos contidos no texto...
Tive uma professora na 7ª série, em 1975, que queria que eu desenvolvesse mais minhas respostas. Foi a única, que me lembro a querer mais do que simplesmente a resposta correta. O problema é que eu não gostava dela; ela comparava minha forma de expressão, minhas respostas corretas, porém secas, com as que minha irmã costumava dar, bem mais prolixas e desenvolvidas. Como disse, ela foi a única professora, salvo lapso de memória, que tentou fazer com que eu relatasse mais do que os textos pediam, porém o fato de eu não gostar dela, fazia com que eu não quisesse agradá-la; e àquele tempo, este era o objetivo, que eu supunha ser, das tarefas escolares.
Em Rottava/12, a autora comenta que a compreensão do texto sugere uma relação entre o propósito e o contexto no que diz respeito a leitura, visto que um dos constituintes do texto é o fato de ser produzido a partir de um querer dizer, um propósito; esta ideia, este propósito definitivamente não era claro para mim.
Adorava fazer pesquisas escolares, que, na verdade, eram um apanhado entre três enciclopédias que tínhamos, mas gostava muito de buscar informações sobre tão diferentes assuntos que estavam contidos naquelas coleções de livros. Cartazes e trabalhos eram o meu “forte”.
Alguns livros que nos mandavam ler no colégio, eu gostei muito, como: O Caso da Borboleta Atíria, O Escaravelho do Diabo, A Vaca Voadora e os subsequentes, A Vaca na Selva e A Vaca Proibida. Porém, detestei, e não conseguia terminar de ler  livros do tipo: A Moreninha, O Cortiço e Senhora. Os trabalhos realizados com estes livros eram as próprias fichas de leitura que vinham junto do livro, eram perguntas do tipo: relacione os personagens com determinadas características psicológicas, resumos do enredo... não havia qualquer preparação de fato consistente em sala de aula que tornasse mais interessante a leitura destes clássicos, nem tampouco uma posterior análise que fizesse com que a má impressão que tivera na primeira tentativa de leitura, pudesse ser reconhecida como precipitada ou preconceituosa.
Rottava/2000 cita critérios que deveriam ser levados em conta para a seleção de material de leitura, tanto nas escola como em família, para que a construção de sentidos se concretizasse, pena que tal artigo  foi publicado tantos anos mais tarde, meus professores não tiveram chance de usufruí-lo, e eu de não ter passado por tão traumática experiência. Mas, más experiências servem para que se as reconheça e se evite-as no futuro.
Minha Educação sexual também começou com uma leitura, era um livro que minha mãe deu para meu irmão, algo como Educação Sexual Para Garotos; era com muitas ilustrações anatômicas, falava de doenças venéreas e mencionava muito superficialmente relações sexuais, na verdade lembro bem que me surpreendi com a existência de algo chamado fimose, assim como também lembro dos desenhos dos órgãos reprodutores internos masculino e feminino. Frustrante, muito mais do que esclarecedor a respeito de informações sexuais. 
Acho que a primeira vez que percebi um livro fechado como algo que congelava  dentro de si incríveis histórias, foi quando li Meu Pé de Laranja Lima; chorei tanto, tanto, e em tantos momentos deste livro...  lembro de olhá-lo fechado e pensar: está tudo ali dentro, tão desesperadamente poderoso quando se lê, e tão inofensivo quando fechado... Não devia ter mais de 12 anos quando isso aconteceu.
Ainda pré-adolescente, descobri em nossa casa na praia, um baú, cheio de livros antigos que minha mãe e suas irmãs traziam de seu “tempo de solteiras”. Durante uns dois ou três verões, passei muitas tardes deitada em meu beliche lendo romances que se passavam na África, alguns romances policiais e foi quando a primeira vez li O Tempo e o Vento, todos estes livros, vindos do baú. Na época não via poesia nenhuma nisso, não havia qualquer encanto na imagem de um baú de livros antigos que crianças liam durante os verões. Hoje, tantas leituras depois esta imagem é quase um clichê, mas de fato aconteceu, e sem qualquer “música de fundo”.
Os romances policiais da Agatha Christie, eu adorava, tentava muito descobrir nas entrelinhas a pista que poderia fazer com que se percebesse o assassino; não lembro de ter descoberto nem uma só vez.
Um pouco mais velha descobri o quanto eu admirava os dicionários. São fascinantes. Tanto quanto descobrir palavras estranhas e a abundancia de significados que tinham outras, me intrigava e fascinava também, o trabalho de fazer tal compilação, admirava muito tais heróis. Há alguns anos li O Professor e o Louco, um livro maravilhoso que conta um pouco sobre o primeiro dicionário Oxford, de língua inglesa, uma leitura encantadora...
Durante o ensino médio, não tenho lembranças de qualquer contato com livros, tampouco tenho qualquer lembrança sobre o que se passava durante as aulas de literatura. Dos professores que tive nesta etapa, só lembro de um professor de matemática, um senhorzinho que nos mandava fazer centenas de exercícios como dever de casa, e eu, adorava. Gostava de ler sobre biologia, química inorgânica e história antiga, porém nada além do solicitado em aula. Durante o cursinho pré-vestibular, além destas matérias recém citadas, gostava demais das aulas de literatura, porém elas não faziam com que eu movesse um músculo sequer em direção a qualquer livro que fosse. A relação que imaginava ter àquele tempo com literatura, era somente a má impressão que a quase leitura dos clássicos do romantismo e do naturalismo deixaram em mim; eu entendia, então, a este tempo, que EU NÃO GOSTAVA DE LER! Porém, em contrapartida, adorava meu professor de literatura, queria aplicar um raio diminuidor nele, e levá-lo sempre comigo, onde quer que eu fosse, ele iria junto me contando aquelas histórias, era fantástico!
Durante a faculdade de Medicina, tínhamos de ler muito. A exceção de bioquímica, que definitivamente não gostava, eram sempre textos e livros muito prazerosos e interessantes, gostava especialmente dos sobre fisiologia humana e neurologia. Nesta época comecei a me arrepender de não ter levado a sério e até ao final meus cursos de inglês. Minha compreensão deste idioma era péssima, e muito material de estudo era em inglês. Eu  tinha que, na maioria das vezes, depender da boa vontade de meus colegas para estudar junto com eles. Quando os textos não eram muito extensos, com a ajuda de dicionários, fazia minhas próprias e sofríveis traduções. Esta deficiência só foi remediada 20 anos mais tarde, quando, finalmente decidi estudar inglês de forma definitiva, falarei mais sobre isto adiante.
Se não estou confundindo muito as datas, durante o período em que estava na faculdade, fiz parte do Círculo do Livro. O Círculo era uma editora que tinha “associados”, que bi ou trimensalmente recebiam em casa uma revista (como as da Avon) com micro resenhas dos livros por eles editados. Gostava muito de ler as resenhas na revista, comprei vários daqueles livros, talvez por um ano ou dois, mas nenhuma leitura que tenha realmente me marcado exceto, talvez, O Beijo da Mulher Aranha e Eram os Deuses Astronautas?
            Após formada, lembro que o primeiro livro que li foi O Físico- a epopéia de um médico medieval, e os outros dois livros que com ele formam uma trilogia. Lentamente fui retomando o gosto pela leitura, lembro, neste período especialmente de A Fogueira das Vaidades, O Mundo Segundo Garp, Um filho do circo, e vários outros. Nesta época, não tinha qualquer apego aos livros, nada que lembrava o cuidado que tinha quando arrumava a prateleira com a enciclopédia no quarto do meu irmão. Não os guardava, depois de lidos não me importava em emprestá-los a quem sabidamente não mos devolveria.
            Foi só depois da maternidade comecei a me apegar novamente aos volumes enquanto objetos, que mereciam estar de alguma forma expostos e admirados, comecei  com os volumes dos meus filhos, e resolvi montar uma biblioteca, inicialmente com muito mais volumes dedicados às crianças do que os de leitura adulta. Mas a paixão pela leitura foi aumentando, aumentando e com ela minha biblioteca.
Há pouco mais de 10 anos resolvi que iria finalmente aprender Inglês, especialmente para poder LER em inglês, já que muitas vezes recebia indicações de livros e autores não traduzidos para o português. Além da conquista do idioma, tive por quase um ano aulas com uma professora que mudou minha perspectiva sobre leitura. Como já citei no início, minha formação escolar, ocorreu durante a ditadura militar, quando não havia qualquer estímulo a que se pensasse sobre nada, tampouco dentro de minha família éramos especialmente estimulados a questionar o que quer que fosse. Nunca fui uma criança ou adolescente submissa, mas muito mais longe estava de ser uma revolucionária. Esta professora dava-me textos, dos mais diversos assuntos e interrogava-me sobre o que eu pensava sobre aquilo. Eu não PENSAVA NADA, poderia responder questões de interpretação daqueles textos, mas era difícil dizer o que eu “pensava sobre”, e devagar foi PERCEBENDO que podia, e que de fato eu  pensava sobre as coisas que lia; não necessariamente eram pensamentos surpreendentes, ou muito qualificados, mas conseguia transformar em palavras, pensamentos antes escondidos inclusive de mim. E senti, de fato, como uma libertação. Esta professora usava a leitura numa perspectiva interativa, onde a construção dos sentidos é resultante da interação do leitor com elementos linguísticos, textuais e discursivos dotexto, mais as inferências estratégicas e o conhecimento anterior- das experiências vividas e das leituras de outros textos (cf Grabe in Rottava/98). E isso foi muito bom e produtivo, as leituras não eram exatamente o foco do que discutíamos, servia como base, como ponto de partida, de onde muitos outros significados eram construídos
            Até minhas leituras de literatura propriamente ditas, se elevaram de patamar, minhas concepções de leitura se tornaram mais ricas e gratificantes, e, a partir daí, comecei a sentir necessidade de dividir as leituras que fazia, compartilhar minhas impressões, dúvidas, êxtases e indignações.
Sete anos atrás, comecei a pesquisar, em vários livros (em inglês), sobre como formar grupos de leitura, muito populares nos EUA, e embasada em muita teoria, formei dois grupos de Leitura; inicialmente fundei o “Coautoria”, onde um grupo de 14 mulheres de diferentes idades e classes sociais se reúnem uma vez por mês e discutem o livro escolhido para aquele mês. É uma experiência bárbara, que merece um memorial específico para si. Este grupo vem funcionando já ha seis anos. Por dois anos tive concomitantemente a ele, o Boo-ya, um grupo de características semelhantes, embora com apenas 7 integrantes, mais uma professora de inglês, onde discutíamos também, um livro por mês, lido em qualquer língua, mas discutido exclusivamente em inglês, e a função da professora era apenas para evitar que cometêssemos erros muito grosseiros ou que acabássemos criando um dialeto. Este grupo teve vida curta, pois não me foi fácil agrupar pessoas com amor pela língua e pelos livros ao mesmo tempo. Talvez agora, no convívio de estudantes de letras, consiga reviver o grupo. Muito embora, atualmente, com a exigência do curso, eu não tenha muito tempo para leituras além das exigidas pela universidade.
Rottava/12 traz à baila que no dia-a-dia, ler não é apenas uma prática individual, mas uma prática que se revela variável de acordo com a comunidade na qual se está inserido. Minha relação com a leitura vem evoluindo, meus interesses cada vez mais se expandem, minha memória, por outro lado, cada vez mais, míngua.
Parece-me que, com a memória que ainda me resta, consegui atingir, ao menos em parte, ao objetivo maior; como diz Gaspar et col, A grande riqueza do memorial é compreendida quando o  rememorar dos eventos constrói pontes com o presente, criando insights que vão dar lugar a verdadeiras aprendizagens.
 É uma forma de reinterpretação da vida, acrescentando-lhe novo colorido, tristezas e sucessos. (Barbosa; Passegui/06 in Gaspar et col)
Sinto que precisaria de mais tempo para preparar este memorial de forma que  sattisfizesse minhas espectativas, mas tampouco posso dizer que ele é, até este momente, apenas um esqueleto de memorial, não. Acho que ele é, agora, pele e osso. Faltam-lhe músculos e muitas gordurinhas.
Como ainda lembra Barbosa e Passegui/06 in Gaspar et col,  na fase inicial da concepção de um memorial, as lembranças emergem coloridas pela emoção. Elas tendem a provocar um conflito existencial na evocação dos momentos, pessoas, espaços, ações charneiras. Fica a sensação de um pensamento nebuloso diante dos fatos completamente desordenados e inseparáveis da vida pessoal e profissional do narrador.
 Adiante fala de uma segunda fase no trabalho de construção de um memorial, onde ocorre uma maior conscientização do seu processo de mudanças, e partilharia com um grupo reflexivo as sucessivas versões da história, fazendo com que o autor ultarapasse temores iniciais e vença resistências, ; e ainda a conclusão final, que busca a Refiguração, a interpretação do texto produzido, conforme Passegui.
Acredito que é nesta sequência de trabalho que encontrarei as proteínas e carboidratos necessários para que meu texto realmente tome corpo.














Bibliografia básica:
ARCOVERDE, Maria Divanira de Lima, ARCOVERDE, Rosana Delmar de Lima. Leitura, interpretação e produção textual – Campina Grande; Natal: UEPB/UFRN, 2007
BRITTO, Luis P. Leme: Leitura: Acepções, sentidos e valor. In: Nuances: estudos sobre educação; ano XVIII, vol 21, n22, p. 18-32, jan./abr. 2012

Bibliografia referida:
GASPAR, Mônica Maria Gadelha de Souza; ARAÚJO, Maria de Fátima; PASSEGGI, Maria da Conceição- Memorial – gênero textual (auto) biográfico. In www.cchla.ufrn.br
ROTTAWA, Lúcia. A leitura e a escrita na pesquisa e no ensino. In Espaços da Escola, ano 4, n 27, p. 61-68, jan./mar. 1998, Ed Unijuí
________________ A importância da leitura na construção do conhecimento.  In Espaços da Escola, ano 9, n 35, p. 11-16, jan./mar.2000, Ed Unijuí

________________ A leitura em contexto acadêmico: o processo de construção de sentidos de alunos do primeiro semestre do curso de letras.  In Signo, v. 37, n 63, p. 160-179, jul.-dez.,2012, Santa Cruz do Sul

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