Reescrita
Por Aluno 44
Um diálogo entre Louis Garrel e Eva Green acontecia;
era um debate sobre Charles Chaplin e sua eficiência como diretor ou algo
parecido. Domingo à noite, cerca de oito horas. Tudo que eu poderia fazer era
assistir “Os Sonhadores”, deitada na minha cama e enrolada em um cobertor macio
e quente. Meu telefone toca e segundo o visor era o meu pai; segundo a voz, sua
esposa. Atendi rapidamente e assustada, com medo que algo tivesse acontecido
com a Vanessa. Pelo contrário, ela me ligava reforçando que no outro dia às
sete horas da manhã ela estaria no hospital, pois às oito horas começaria o
parto. A ligação não precisaria nem ter sido feita, pois desde o dia vinte e
seis de julho do mesmo ano eu já havia começado a contagem regressiva.
Desligado o telefone, toda a tranquilidade daquele
dia entediante de domingo se foi. Sono? Nem ao menos sabia o significado disto.
Minha madrugada inteira se resumiu a fluxos de pensamentos. Como seria ter um
novo membro na família? Será que ela se pareceria com o meu pai ou com sua mãe?
Como seria lidar com as suas diferenças? Será que ela conseguiria superar todas
as dificuldades provocadas pela síndrome? Como a família iria cuidar desta
pequena? As perguntas vinham seguidas de uma tentativa intensa de respondê-las,
mas nenhuma hipótese de resposta surgia em minha mente. Criei situações: nós
duas brincando no parque ou chegando na escolinha no seu primeiro dia de aula.
Tudo muito clichê e até meio infantil, mas inevitável naquele momento.
Minha mãe tocou na porta e eu automaticamente pulei
pra fora da cama. Eu poderia ter dormido duas ou oito horas, pois estaria
igualmente disposta. Lembro-me de fazer exatamente tudo no modo automático, sem
ao menos pensar: tomar banho, vestir um, a calça que poderia ser roxa ou verde
que eu não notaria, uma blusa de pijama ou formal e aquele casaco preto que
puxei do armário pois estava à mão. Se tomei café da manhã? Mal posso me
lembrar. A cena que me vem à mente é a da ida até o hospital.
É claro que, especificamente naquele dia, algo
aconteceria para atrasar todo o meu caminho. Um acidente talvez, um pneu
furado, uma escola de samba ensaiando na avenida em pleno agosto, um protesto.
Não sei, qualquer coisa poderia acontecer. E aconteceu: lá estavam na Avenida
Beira Rio todos os carros da cidade (segundo o meu cálculo). De dez minutos de
trajeto, demorou quarenta. Não havia mais música, nem eu sabia dizer os números
dos carneirinhos que eu havia contado para me acalmar. Apenas me mexia no banco
do pequeno Palio de minha mãe, com a esperança que assim o tempo passasse mais
rápido.
Chegando à maternidade do Hospital Mãe de Deus,
aguardei o que poderia ser dez ou três horas naquela sala com as paredes
amarelo claro e cheirinho de pêssego. Pela janela eu via prédios altos que só
ajudavam na sensação de estar sendo sufocada por aquela situação toda. Nem o
sol que aparecia no céu e a presença de meus familiares me tranquilizavam. O
silêncio e a tensão eram tantos que os barulhos dos passos do médico vindo em
minha direção me causavam nada menos que fortes arrepios. “Nasceu” foi a única
coisa que consegui entender antes de sentir aquela sensação de alívio que se
converteu em lágrimas.
Quando finalmente consegui pegar no colo aquela
criança tão pequeninha e delicada, o mundo pareceu se colorir de outra maneira.
Seu nome é Karolina Duran, nasceu dia 26 de agosto de 2009 com 3,478 quilos, 42
centímetros, olhos amendoados, uma prega palmar transversal e 47 cromossomos.
Características da Síndrome de Down. E mesmo tão pequena e inocente causou em
mim sentimentos novos e que, até hoje aprendo a lidar. Foi a partir daquele
momento que entendi como é sentir a necessidade de proteger alguém, de dar o
melhor de si pela felicidade do outro.
Francesco Alberoni dizia que a vida é feita de
vários renascimentos e eu diria que este dia foi o meu. Primeiro por ter
conhecido um altruísmo que eu ao menos sabia que existia em mim. A partir do
nascimento da Karol, passei a entender que o desenvolvimento dela depende
fortemente do estímulo externo e, ao ampliar isso, compreendi que ela não é a
única. Que minha vida também depende do próximo e, por isso, preciso
valorizá-lo. Segundo porque ter essa pequena em minha vida só me trouxe
alegrias.
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