Aluno 76
1 Versão
Aprendi a ler aos seis anos, em 1986, com a professora Marlene,
na Escola Divino Coração. O colégio fica em Alegrete, cidade da Fronteira Oeste
gaúcha, onde nasci. Era como se, naqueles dias, eu estivesse comprando, em
parcelas, uma passagem só de ida, sem adquirir a volta, para um destino
desconhecido.
Foi com a ajuda de Marlene que, a partir do meu processo de
alfabetização, consegui ir avançando, ano a ano, para o estágio de letramento:
Alfabetização significa apenas a ação de ensinar/apreender a ler
e a escrever, enquanto letramento diz respeito à condição de quem não apenas
sabe ler e escrever, mas cultiva (dedica-se a atividades de leitura e escrita)
e exerce (responde às demandas sociais também dessas mesmas habilidades) as
práticas sociais que usam a escrita. (ROTTAVA, 2000, p. 12)
Não tenho recordações muito claras da virada para o meu
letramento, mas algumas coisas nunca saíram da minha memória. Lembro que me
associei à biblioteca municipal, creio que incentivado por meus pais, e pegava
emprestado entre três e quatros livros para ler por semana. Na lista, tinha
alguma coisa do Monteiro Lobato, mas os mais amados eram o Manual do Escoteiro Mirim e os exemplares da revista Nosso Amiguinho.
Na verdade, eles representam frustrações, quase traumas, de uma
infância complicada, em que eu me sentia um estranho em meio aos meus colegas.
Naqueles dias, tudo o que eu mais queria era ter a coleção com os manuais,
frequente nas estantes de meus amigos, e uma assinatura daquela revistinha - as
da bilioteca, as quais eu levava para casa, estavam sempre recortadas, pois
havia algo para montar na página central. Feliz mesmo eu ficava quando o moço
que ia vender a assinatura da publicação deixava uma edição novinha só para
mim: ah, como eu ficava feliz!
Nos anos seguintes, vieram os livros da coleção Vaga-Lume, um
clássico para os que nasceram nos anos 70 e 80. Entre os mais famosos estão O Escaravelho e o Diabo, de
Lúcia Machado de Almeida, e O
Rapto do Garoto de Ouro, de Marcos Rey, mas, para mim, imbatível mesmo foi
ler Um Leão em Família, de
Luiz Puntel, o primeiro livro que me fez chorar. Destaco também Aventura no Império do Sol, de
Silvia Cintra Franco, sobre uma equipe de vôlei que vai jogar um campeonato no
Peru, país que, na época, era imbatível com a sua seleção feminina. A
identificação, obviamente, aconteceu porque o esporte é o meu favorito -
comecei a jogar voleibol aos 10 anos e nunca parei.
Gostava também de ler os textos que vinham em nossos livros
escolares. Todo início de ano era uma festa. Tem coisa melhor do que pegar um
livro novinho em folha e desbravá-lo? (Claro que tem, mas, com certeza, naquela
época, fazer isso era um dos meus passatempos favoritos.) A leitura que mais me
emocionou foi a de “Procura-se um Amigo”, de Vinicius de Moraes, que começa
assim:
“Não precisa ser homem, basta ser humano, basta ter sentimento,
basta ter coração. Precisa saber falar e calar, sobretudo saber ouvir. Tem que
gostar de poesia, de madrugada, de pássaro, de sol, da lua, do canto dos ventos
e das canções da brisa. Deve ter amor, um grande amor por alguém, ou então
sentir falta de não ter esse amor. Deve amar o próximo e respeitar a dor que os
passantes levam consigo. Deve guardar segredo sem se sacrificar”.
Só mais tarde é que eu fui perceber que o que eu procurava, na
verdade, era um amor, e não amigo. Isso só ficaria claro, entretanto, no final
da adolescência, com outras leituras. Naque momento, eu ainda me comportava
como um “alienado”:
“O simples hábito de ler descomprometido, sem a reflexão aguda
do sentido das coisas, numa condição em que a pessoa é levada pelas
circunstâncias e motivada por interesses pragmáticos (como seria ler para
tornar-se mais competitivo ou ler para divertir-se e esquecer) se caracteriza
como uma situação de alienação. O que é alienado é automatizado, é feito
mecanicamente, sem consciência dos processos de significação e, portanto, sem
capacidade de ampliação de horizontes de vida”. (BRITTO, 2012, p. 30)
Já morando em Porto Alegre, o que mais me marcou foram as aulas
do professor Bayer, no Colégio Americano, que me apresentou para alguns
clássicos da literatura brasileira e ampliou meus horizontes. Foi com 15 anos
que li pela primeira vez O
Cortiço, de Aloísio de Azevedo, e os poemas depressivos de Augusto dos
Anjos. Aquilo assustava um pouco, sim, mas, ao mesmo tempo me fascinava. Tanto
que foi Literatura a matéria que mais estudei no cursinho: se não me falha a
memória, li, no ano de preparação para os vestibular, uns 15 livros.
Em 1998, aos 18 anos, na faculdade de Direito, além de me
aprofundar na bibliografia do curso, comecei a me aventurar com escritores mais
atuais, com destaque para o Caio Fernando Abreu. Foi na obra dele que me
reconheci homossexual e percebi que muito da tristeza que sentia na infância
tinha a ver com isso. Caio F., como ele assinava suas cartas, me apresentou
para o amor gay e para o sexo entre dois homens, em contos inesquecíveis como
“Sargento Garcia” e “Para uma Avenca Partido”. Eu, certamento, ao relacionar
aquelas leituras com as minhas experiências e o meu passado, avançava no
processo de leitura.
“A compreensão de um texto é um processo que se caracteriza pela
utilização de conhecimento prévio: o leitor utiliza na leitura o que ele já
sabe, o conhecimento adquirido ao longo de sua vida. É mediante a interação de
diversos níveis de conhecimento, como o conhecimento linguístico, o textual, o
conhecimento de mundo, que o leitor consegue construir o sentido do texto”.
(KLEIMAN, 1995, p. 13)
Um ano depois, na Faculdade de Jornalismo, Caio ainda se fazia
muito presente, mas, com a internet na minha vida, passei a acompanhar as mais
divesar experiências de escrita, como o e-zine Cardoso Online, enviado
semanalmente por e-mail, que revelou escritores como Daniel Galera e Clara
Averbuck. De lá para cá, muitas coisas novas foram surgindo nas minhas
leituras, muito por conta do meu trabalho como jornalista: comçaram a fazer
parte de minha vida revistas de lifestyle, como VIP e GQ,
passando por outras mais “cabeças”, como a piauí,
até chegar, no ano passado, na tragédia grega, por conta da Faculdade de
Letras, que comecei a cursar.
No momento, tenho me dedicado às leituras obrigatórias do curso.
Mas, sempre que sobra um tempinho, tento explorar outros mundo, como livros
sobre comida do norte-americano Michel Pollan, e não vejo a hora de chegar as
férias para me dedicar e dar toda a minha atenção para Linha M, nova obra da cantora
Patti Smith, de quem sou fã. Em resumo, sigo pagando por aquela viagem de ida,
a qual ainda estou tentando descobrir para onde vai me levar. O preço dessa
aventura é, com certeza, alto, mas tem valido a pena.
Referências:
BRITTO, L.P. Nuances: estudos sobre educação. v. 21, n. 22, p.
18-32, jan. /abr. 2012.
KLEIMAN, Angela. Texto e leitor: aspectos cognitivos da leitura.
4ª ed. Campinas: Pontes, 1995.
ROTTAVA, Lucia. A Importância da Leitura na Construção do
Conhecimento. In: Espaços da Escola, Ijuí, Editora UNIJUÍ, nº 35, jan/mar.
2000, p. 12.
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